Dentro do imenso leque de possibilidades que compõem a chamada arte contemporânea, há uma vertente que se direciona especificamente para o corpo, suas secreções e sensações como forma de afirmar a identidade do indivíduo e de reivindicar as questões relativas a sexualidade, gênero e liberdade de expressão. De acordo com o filósofo e teórico da arte, Pere Salabert2, essa busca da presença através do uso do corpo na arte contemporânea, como uma reivindicação da matéria e de sua mundanidade, se dá em contraposição ao transcendental e anímico da representação ilusória dos movimentos artísticos anteriores. Essa busca é colocada pelo autor de modo evolucionista no contexto da História da arte, em que a presença pelo uso da matéria mesma vai se afirmando no decorrer do tempo em detrimento da representação, tendo como conseqüência uma maior aproximação da arte com a realidade.
Esse processo «evolutivo» não só pode ser visto no decorrer da História da arte, como também no decorrer de algumas trajetórias artísticas, como, por exemplo, no desenvolvimento da obra acionista de Günter Brus, na qual primeiramente o corpo em sua totalidade realizará a pintura gestual, para depois tornar-se o próprio suporte da pintura e, finalmente, de suporte passar a ser a obra mesma. Esse artigo tem, portanto, o objetivo de demonstrar a importância do corpo na arte contemporânea, em especial no contexto do acionismo vienense (Aktionismus), e de explicar como a obra de Brus tem esse caráter evolutivo que se enquadra na teoria defendida por Salabert. Para isso, primeiramente se expõe o contexto pós-guerra profícuo para o surgimento da arte corporal, e do acionismo vienense em particular, para então contextualizar a trajetória acionista de Brus e a humanização de sua arte.
A Segunda Guerra Mundial, uma das guerras mais sangrentas da história da humanidade - na qual morreram, entre os doloridos anos de 1939 e 1945, mais de cinqüenta milhões de pessoas, dentre os quais seis milhões de judeus assassinados pelo regime nazista - nos mostrou a capacidade humana de reinventar e reconstruir sua existência sobre escombros, dramas, catástrofes e as mais diversas dificuldades.
Uma nova Europa surgiu dos horrores desta guerra buscando entender a efemeridade da vida, a superação da dor, o reconhecimento da identidade e a violência da repressão. Nesse sentido, a geração pós-guerra visou, sobretudo, obter explicações para essas questões emergentes através da conquista da liberdade. O vazio deixado pelo violento ritual da guerra colocou em xeque as concepções cristãs e, nessa crise niilista, a idéia de alma como algo puro e eterno e a idéia de carne como algo impuro e degradável - elementos historicamente separados - vai dar origem a idéia de corpo carregado de matéria e de sentimentos e que, nessa nova concepção, passa a ser considerado a única propriedade e sobre a qual se deve ter total domínio.
A liberdade que se quer conquistar é, acima de tudo, a liberdade do próprio corpo, a liberdade de ser-corpo. Esse desejo vai ser logo assumido por aqueles que andam na vanguarda da história, ou seja, os intelectuais e artistas que nas suas produções vão evidenciar essa busca. Nesse sentido, surgirão os movimentos artísticos que passam a colocar o corpo e todos as suas secreções como zona artística, território da ação, dos fenômenos, dos processos e da própria obra de arte como é o caso do acionismo vienense, da performance e da body-art. Porém, deve-se ter claro que:
É evidente que a arte do pós-guerra não pode ser reduzida à performance ou às mais variadas modalidades da “arte do corpo/da dor”; é evidente também que não se deve de modo algum reduzir a arte ao nível da manifestação do retorno do recalcado. Também tem sido comum uma leitura da arte a partir de um arsenal advindo da psicanálise sem a necessária mediação com base na reflexão sobre os fenômenos da arte e da sua história. Devemos ter em mente que tanto a psicanálise como a arte possuem um desenvolvimento paralelo no século XX: e esse percurso paralelo não é nem harmônico nem epifenomênico. Mas não há dúvidas quanto ao fato de que um movimento também traduz e ilumina o outro.3
No contexto das práticas artísticas voltadas para o corpo como a própria obra de arte, a Áustria será o cenário do acionismo vienense, o movimento mais contundente nesse contexto pelo seu caráter seminal e pela violência impactante de suas ações. Não será por acaso que esse movimento, provavelmente a mais significativa contribuição do país para o desenvolvimento da arte contemporânea, surja na Áustria dos anos sessenta. Um país que ficou com cicatrizes profundas dos sucessivos conflitos pelos quais passou desde o início do século, impregnando-se de conservadorismo; mas que ao mesmo tempo sempre demonstrou uma capacidade artística impressionante e muito comprometida politicamente. Como afirma Lórand Hegyi4:
Mediante su fecunda polémica con el legado de su tradición artística, la generación de artistas austríacos de la posguerra ha contribuido considerablemente, y de forma individualizada, a la escena internacional del arte. Los jóvenes rebeldes de entonces, que tuvieran que allanar el difícil camino a través de la tierra de nadie intelectual del periodo de la posguerra, son hoy día artistas de renombre que, en su calidad de maestros y profesores de academia, han transmitido su experiencia a innumerables estudiantes. La cesura política del regímen de Hitler produjo enormes estragos en la vida cultural austríaca. Sus cicatrices son evidentes. Pero también es innegable la vitalidad de una nación con una importante tradición cultural que en medio de los escombros de su destruido y maltratado pasado ha sabido encontrar el camino hacia un presente y futuro creativos.
Desse modo, na efervescência dos movimentos contraculturais dos anos sessenta e evidenciando o desprendimento de um sujeito que encontra suas marcas e sua potência de liberdade através do corpo, o acionismo vienense se coloca como uma autêntica radicalização das vanguardas tendo como alvo a sociedade burguesa, as suas repressões e os seus tabus e busca, acima de tudo, o entendimento da identidade e conquista da liberdade.
Portanto, para compreender as pretensões do movimento, através da «estética da destruição» colocada por seus integrantes num sentido de que o mesmo se “apropria de una dimensión terapéutica y psicoanalítica que legitima su destrucción como fin último de libertad”5, tem-se que levar em conta não só a situação da Áustria do pós-guerra, da Europa emergente dos anos sessenta e das revoluções libertárias de 68, mas também tem-se que considerar a guerra fria, as guerras do Vietnam e da Corea, da reorganização das estruturas políticas em todo o mundo através da expansão das multinacionais e da definição dos territórios pela ordem econômica, classificando o mundo em três escalas, pois foi neste contexto onde se produziram as ações mais radicais, chegando ao limite ou transgredindo o limite na busca excessiva e, portanto, utópica de liberdade.
O acionismo vienense, enquanto um grupo dogmático e, de certo modo, fechado, se desenvolveu em Viena entre 1965 e 1970, sendo protagonizado pelos artistas austríacos Herman Nitsch, Otto Mühl, Rudolf Schwarzkogler e Günter Brus e pelos escritores Gerhard Rühm e Oswald Wiener. Como um predecessor da body-art, o acionismo vienense, se comparado com outros movimentos como os happenings, performances e fluxus, caracterizou-se como a forma mais violenta e agressiva de tratar o corpo no âmbito artístico de seu tempo. Sua contundência foi tanta que suas influências se alargam até os dias atuais, isso dado, principalmente, pela particularidade que o mesmo assumiu ao colocar a negação absoluta da estética, do artista e da própria arte, sob o lema da redenção e da liberdade, assumindo assim um papel transgressor e ao mesmo tempo messiânico e redentor.
Os acionistas consideravam suas ações, que consistiam no desmantelamento de tabus corporais e mentais, como «anti-arte», ou seja, acreditavam realizar ações puras desprovidas de qualquer caráter estético, sem o fim de contemplação ou reflexão, numa busca catártica de libertação. O próprio corpo era o suporte da obra e os materiais usados eram, além dos instrumentos de corte e perfuração, principalmente o sangue e as secreções do próprio «corpo-suporte», renunciando, desse modo, qualquer tipo de mercantilização.
No acionismo vienense, as facas se convertem em pincéis, o corpo em tela e as próprias secreções do corpo humano em pigmento, desse modo, o corpo se converte na pintura, na escultura e na expressão plástica. Afinal, nas suas ações, os artistas se cortam, se mutilam, colocando em evidência a idéia de Günter Brus da “destruição como elemento fundamental na obra de arte”. Deste modo, através das automutilações dos artistas, se torna possível entrar na dimensão de uma arte terapêutica,
[...] mediante la explicitación de las líneas inconscientes que habrían sido reprimidas por la cultura. Su objetivo sería el de hacer visible lo invisible. Así, el dolor producido, como en un ritual, tendría en último término un sentido liberador, catártico, a través de lo «dionisiaco» purificante y su aparentemente nihilismo se presentaría como una crítica a la religión, la moral y la política, manifestada a través de comportamientos sadomasoquistas que buscan la revolución la identidad en la no-identidad (es decir, a través de la animalidad y del dolor).6
O acionismo vienense, além de seu caráter terapêutico e ritualístico, também se mostra como uma arte com caráter político, pois, sob a ideologia que culminaria no Maio de 68, havia também uma tentativa de transformação e questionamento do mundo pela via revolucionária. Como afirma a historiadora e crítica de arte Piedad Solans7:
El accionismo supuso un feroz ataque a la sociedad burguesa y especialmente a la Viena de postguerra, con todas sus secuelas monárquicas y militares, desde planteamientos psicológicos –el arte como terapia y liberación de las represiones sexuales, tanáticas y agresivas– y revolucionarias –el arte como política, es decir, como transformación del mundo, dentro del contexto ideológico de las revoluciones de mayo del 68, que conmocionaron Europa y Norteamérica.
Para os acionistas o melhor meio para a expressão de suas contestações em relação ao poder repressor do Estado e ao comportamento cínico da sociedade foi o corpo, a única coisa que pertence realmente ao homem e sobre o qual se deposita a cultura de forma mais intensa, formando os comportamentos e ideologias. Nesse sentido, ao colocar o corpo em destaque com o sentido da dor e da destruição, os acionistas, pela via do repúdio e do asco e na relação de alteridade, buscavam mobilizar o indivíduo para que voltasse o olhar para si mesmo e questionasse a sua identidade e a sua postura ética.
Os acionistas, apesar de possuírem como eixo comum a ênfase no e pelo corpo como ação artística, formavam um grupo de idéias heterogêneas no qual cada artista atuava a sua maneira em intensa colaboração com os demais.
A primeira ação foi apresentada, no final de 1962, por Hermann Nitsch com a colaboração de Otto Mühl, os dois eram pintores e podem ser considerados os iniciadores do movimento. Nessa ação, de trinta minutos de duração, Mühl verte sangue de uns pequenos recipientes sobre a cabeça de Nitsch, que estava vestido com uma túnica branca e atado através de umas argolas à parede, como um crucificado. Partindo da pintura, o objetivo era demonstrar as intenções do Teatro de Orgias e Mistérios de Nitsch, que segundo o crítico de arte José Sarmiento8, se define como “un teatro de la crueldad sinestésico que invita a vivir de una manera intensa”, e que caracteriza por sair da superfície do quadro e tomar conta de um corpo vivo e em movimento, na busca da obra de arte total.
Para Nitsch, pintura, pigmento e sangue se misturam formando um só corpo, um corpo real, não pictórico: “cuando utilizo sangre, la vierto en la superficie del cuadro y la mezclo con los pigmentos, no veo en ello un efecto pictórico sino una entidad real que tiene consistencia física, color, olor...”9. Considerando cada ação como um «acontecimento real», Nitsch rompe com os limites entre arte e realidade, entre as substâncias orgânicas e os elementos artísticos através de uma atitude repugnante, obscena e perversa que pretende motivar os sentidos do espectador sem que esse participe ativamente da ação. As ações de Nitsch inicialmente se restringiam à pequenos espaços privados tendo como espectadores um número reduzido de amigos, posteriormente, apresenta seu trabalho em espaços públicos como museus e galerias e, a partir de 1971, comprará e converterá o castelo de Prinzendorf no Teatro de Orgias e Mistérios, no qual apresentou sua ação nº 80 de setenta e duas horas e, em 1998, a festa do seis dias, que pode ser considerada o ponto culminante de seu teatro.
Otto Mühl inicia-se na pintura através do informalismo e da action-painting, mas sua busca por uma arte que se distancie da superfície limitada da tela o leva a pintura matérica e a destruição da superfície pictórica, que ele denominará de «ação material» e que refletirá sua busca obsessiva de “abolir la superficie pictórica y palpar la experiencia vital, erótica, agresiva y tanática del acto artístico”10. Em suas primeiras ações, na década de sessenta, denominadas Materialaktion, Mühl irá utilizar vários materiais orgânicos, como comida, além do corpo e suas secreções, com o objetivo de colocar para fora toda a materialidade da obra. A partir dos anos setenta, Mühl irá desenvolver um novo conceito de ação sobre a influência de Wilhelm Reich11 que ele denominará «análise acional». Nas ações desse período, trabalhará com corpos desnudos em posturas corporais escandalosas e utilizando freqüentemente objetos carregados de significações eróticas perversas, num discurso que objetiva a liberdade sexual e o desaparecimento da opressão. Mühl considera cada uma dessas ações como um tratamento corporal que se representa e que permite reviver os acontecimentos do passado como uma espécie de terapia.
Influenciado por Otto Mühl e Hermann Nitsch, Rudolf Schwarzkogler abandonará a pintura e realizará, em 1965, sua primeira ação, que será sua única ação pública e também a única na qual irá utilizar a cor (azul) e vários fotógrafos. As cinco posteriores serão realizadas em espaços privados, com um só fotógrafo e limitadas às cores preto e branco. Esse acionista não realizará em vida nenhuma exposição de suas ações ou de sua obra plástica. Suas ações ocorrem em espaços brancos, com poucos elementos (tesouras, lâminas de barbear, facas, cabos elétricos, seringas, fios etc.) e a câmara fotográfica como testemunha. Sua obra será marcada pela alquimia física, alteração formal do corpo, atmosfera hospitalar, castração e violação. Schwarzkogler pensava o corpo não como algo natural, mas sim como algo cultural, sendo a cultura o elemento determinante das funções, ciclos, ritmos e da própria forma do corpo através dos processos cirúrgicos, alquímicos, elétricos e clínicos e que resulta em um estado de aparência, um estado imaginário. De acordo com o próprio artista, “todos los cuerpos son sólo apariencias, imágenes de la imaginación, estados de la mente creados fuera de su propia volición”12. Nesse sentido, as imagens fotográficas resultantes têm uma perfeição estética, refletindo com um refinamento formal a angústia, opressão e o silêncio, porque para esse acionista a imagem fotográfica, mais do que a ação tem a plena capacidade de recriar as formas de construção imaginária do corpo através da preservação instantânea dos processos que lhe conformam. A fotografia se coloca, portanto, como um elemento essencial de suas ações, como o próprio artista afirma: “el acto mismo de pintar puede ser liberado de la obligación de obtener reliquias como objetivo si se le coloca delante de un aparato reproductor que retoma la información”13. Encerrado o ciclo de ações, Schwarzkogler se volta para o desenho e para a escrita conceitual, mas suas obsessões em relação ao corpo permanecem e o levam ao suicídio em 1969, sendo considerado por alguns como o mártir da arte corporal.
Günter Brus, por sua vez, inicia sua atividade artística realizando pintura gestual que logo o levará a romper com os limites do quadro e iniciar suas ações, nas quais utilizará o corpo como elemento motor de suas investigações, como ele mesmo afirma: “Mi cuerpo es la intención, mi cuerpo es el suceso, mi cuerpo es el resultado”14. Seu espírito libertário e contestador o levará a arrancar de seu próprio corpo por meio de suas ações todas as amarras que o estado e a sociedade incutiram em sua pele e sua mente, na tentativa de conseguir um corpo limpo, puro. Realizará mais de trinta ações no período compreendido entre os anos de 1964 e 1970, quando então passará a se dedicar somente ao desenho e a escrita. Este artista, como enfoque do trabalho, terá sua trajetória mais detalhada posteriormente.
Um olhar ligeiro e distraído pode não perceber as diferenças entre as ações dos protagonistas do movimento, gerando comentários generalistas e, portanto, equivocados. Obviamente, há um fio condutor comum que aproxima os trabalhos: o corpo, como protagonista das ações e o objetivo de romper com as repressões do Estado e da sociedade através da dor, do sacrifício, do espetáculo, do sinistro, porém, cada um dos artistas vai atuar de uma maneira particular e por um período distinto. Nesse sentido, Schwarzkogler e Brus foram os primeiros a interromperem as ações, enquanto Mühl e Nitsch continuaram por mais umas décadas. Schwarzkogler interrompeu suas ações pelo próprio suicídio e Brus as interrompeu, possivelmente, pela proximidade da morte, porque tinha chegado ao limite da dor e da violência em seu próprio corpo na sua última ação denominada Prova de resistência (Zerreissprobe, 1970-71). Como afirma Solans15, “si ha habido un cuerpo al límite de la muerte, ha sido el de Günter Brus: ello le confiere una autoridad para renunciar al arte – en el sentido más sublime y más abyecto -, la admiración y la congruencia”.
Em relação ao modo de atuação, Nitsch e Mühl são os percursores e se manterão “fascinados por la alquimia pura de los líquidos, de las sustancias, de los fluidos y las materias, de los procesos y las mezclas, por la explosión de vida, caos, creación y muerte que se produce al salir de la superficie del cuadro” 16. Sendo que as ações de Nitsch estarão mais voltadas para o sacrifício e o ritual, num ataque direto aos valores religiosos, enquanto as ações de Mühl se voltam mais para a liberação sexual pela via da perversão e do escárnio. Schwarzkogler irá, nas poucas ações que realiza, se voltar para a artificialidade do corpo, a castração e a violação, recorrendo a atmosfera hospitalar, as simulações cirúrgicas e ao ambiente catastrófico. Brus se centrará no corpo – no próprio corpo, pois ao contrário dos demais acionistas Brus utilizará quase exclusivamente o seu próprio corpo para as suas ações, sendo que nas poucas vezes que utilizou modelos foram de seu entorno mais imediato: sua esposa Anni e sua filha Diana - e em seus processos de resistência e de purificação, partindo do corpo como um suporte para a pintura até chegar ao corpo como limite da violência e da destruição.
Devido à violência chocante de suas ações e o modo particular e original em que cada artista soube utilizar o corpo para colocar as questões que os motivavam, o acionismo vienense é referência para todos os que, de alguma forma, utilizam diretamente o corpo na produção artística contemporânea.
Günter Brus nasceu em Ardning (Áustria) em 1938 . Provavelmente, um dos motivos que impulsionaram Brus para desenvolver suas aptidões artísticas foi o fato de seu pai, comerciante, ser um aficionado em pintura e poesia, propiciando desde cedo o contato com o mundo da arte e da literatura. Esses mundos serão para Brus um refúgio do ambiente extremamente castrador e autoritário em que vivia, fatores que o tornariam um adolescente tímido e inseguro. De acordo com Brus, esse comportamento será respondido posteriormente com algumas de suas ações mais violentas.
Em 1957, inicia o curso de arte gráfica publicitária na Escola de Arte Industrial de Graz, finalizando-o como o melhor aluno, por esse motivo será admitido diretamente na Academia de Artes Aplicadas de Viena, na qual rapidamente trocará as artes gráficas pela pintura. No entanto, não permanecerá muito tempo na academia, abandonando-a prematuramente. Não obstante, seu interesse pelas artes continua e, influenciado pelas obras do modernismo austríaco e do expressionismo, começará a realizar composições gestuais abstratas. Neste período, interessa-se também pela música e seus recursos expressivos, elemento que o acompanhará desde então e que, de acordo com Johanna Schwanberg17, desempenhará um papel importante na tradução do corporal para o visual de sua pintura gestual e, posteriormente, de suas ações.
A viagem de trabalho para Mallorca que empreende com seu companheiro da academia Alfons Schilling, em 1960, será fundamental para o que a pintura gestual se sedimente como uma prática sua, uma vez que irá entrar em contato com a artista norte-americana Joan Merritt e sua pintura expressionista abstrata e, somado a isso, verá pela primeira vez os originais de Francisco de Goya no Museu do Prado, artista com quem crê ter um vínculo especial por compartir com ele sua atitude crítica frente às convenções da sociedade e do poder, e para o qual fará, em 1997, a homenagem Das Inquisit (O processado pela Inquisição). No verão deste mesmo ano, também conhecerá as obras do informalismo internacional na 30ª Bienal de Veneza.
A partir dessas influências, Brus desenvolverá suas pinturas gestuais, nas quais rompe com qualquer efeito de profundidade – utilizando, por esse motivo, basicamente o preto como cor - e coloca a expressão corporal como o elemento desencadeador de suas pinturas. Seu principal objetivo, nesse momento, é traduzir o movimento em visualidade para atingir a «pintura total», na qual pintar como processo corporal é mais importante que a estruturação da superfície, que passa a ser pensada como algo aberto e sem centro. A partir de então, Brus entende seus quadros como «acontecimentos» que fazem parte do mundo e que isolados do mundo perdem seu significado, como ele mesmo afirma:
Ante todo, lo que siempre me ha parecido extraño es que no se pinte con ambas manos a la vez. Bien, si desde un punto de vista técnico he llegado tan lejos como para no poder pintar con el pelo, la barriga o el trasero, ¿qué ocurre sin embargo con mi segunda mano? Hay que vivir en la pintura. Que todo a mi alrededor sea pintura. Sin duda es por ello por lo que el cuadro es una parte del mundo y en sí no tiene autonomía. Una incomprensibilidad espacial (por lo menos no comprensible desde la tradición): eso es lo que yo exijo de mis cuadros. El abandono absoluto de la visión según la cual el centro de la obra está en el cuadro. Y no exactamente en el sentido de Pollock.18
Em 1961, Brus mostra pela primeira vez seus trabalhos ao público, em uma exposição que realizará em parceria com Schiling. Nesse mesmo período, também conhecerá Otto Mühl e logo depois Hermann Nitsch. Terá um contato intenso com esses artistas, fato que, somado as suas próprias investigações dentro da pintura gestual, conduzirá Brus para suas ações. Nesse desenvolvimento da pintura gestual, Brus centra-se cada vez mais em seu próprio corpo e em sua motricidade na hora de pintar ao mesmo tempo em que procura ampliar a pintura ao espaço que o rodeia. Como conseqüência dessas investigações Brus realizará Malerei in einem labyrintischen Raum (Pintura em um espaço labiríntico, 1963), na qual pintou todas as paredes de um espaço reelaborado, com a colocação de tiras de papel presos a cordas esticadas, com a intenção de “fabricar un laberinto que me ayudase a evitar que las ideas compositivas tomasen cuerpo demasiado deprisa. Tenía en mente la idea de trabajar todas as paredes al mismo tiempo, como si de un «cuadro-circular» se tratara; de realizar mediante el desplazamiento constante por el laberinto una «descomposición» ideal”19.
Essa busca por uma pintura que ocupasse todo o espaço e em íntima relação com a expressão corporal somada as influências de Mühl e Nitsch, que já haviam realizado algumas ações, levariam Brus a realizar sua primeira ação, denominada Ana, no ano de 1964, e que contou com a participação do cineasta experimental Kurt Kren na sua elaboração, o que a caracterizou como uma «ação cinematográfica». Nessa ação, Brus envolto em trapos brancos se movia por um quarto branco para logo começar a atuar com o preto, manchando as paredes e o próprio corpo, em seguida fez o mesmo com sua mulher Anni, tudo ocorrendo numa dinâmica bastante espontânea em um processo de criação de uma pintura «viva», dando início, dessa forma, às suas «autopinturas».
A documentação cinematográfica e fotográfica, que faziam parte do projeto da ação, foi fundamental como registro do que se pode qualificar como o início da «arte corporal»ou «body-art»20. Outros documentos importantes nesse sentido são os projetos das ações, uma vez que Brus na maioria das vezes fazia textos e desenhos preparatórios. Pode-se afirmar, portanto, que Günter Brus, no contexto do acionismo vienense, provavelmente foi o artista que demonstrou um trabalho mais contundente em relação ao corpo no contexto artístico e com isso atingiu uma grande repercussão internacional e se tornou referência para a «arte corporal», como afirma Peter Wiebel21:
En la autopintura, el cuerpo [del artista] se introduce por primera vez en el arte, y se inicia el arte sobre el cuerpo. Dado que Nitsch trabaja con animales muertos y Mühl (como también posteriormente Schwarzkogler) con los cuerpos de los modelos, la acción corporal, que hoy se considera el momento más importante del accionismo vienés, es la auténtica parcela de Brus. Günter Brus es el auténtico fundador del body-art, porque es el primero que en sus autopinturas sitúa a su própio cuerpo en el centro de la acción. Por lo tanto, si hace falta señalar dónde se encarna el cambio de paradigma ocurrido en los años sesenta, de la pintura a la acción, de la pintura sobre lienzo al cuerpo, de la ilusión a la realidad, es la autopintura de Brus.
A partir de então, sua obra se encaminha para uma maior contundência do seu corpo como único meio de sua arte, liberando-se completamente da tela, adquirindo um aspecto ritualístico e de catarse social. Nesse contexto, produz a sua primeira série de ações, como Selbstbemalung (Autopintura, 1964) e Selbstverstümmelung (Automutilação, 1965). Uma característica a ser destacada nessas séries é a introdução de objetos como machados, tesouras, facas, garfos e lâminas de barbear que agrupa sobre si mesmo e no seu entorno. Esses objetos se colocam como contraponto a vulnerabilidade do próprio corpo e indicam o encaminhamento da sugestão de violência em relação ao corpo para a autoagressão da série de ações posteriores de Körperanalysen (Análise corporal, 1967-1970).
Sua oitava ação Weiner Spaziergang (Passeio Vienense, 1965) será sua primeira ação pública que se caracteriza pelo passeio polêmico de Günter Brus no centro de Viena todo pintado de branco e aparentemente partido em duas metades por uma linha negra, como uma «pintura viva», “convertido por la pintura en objeto de arte de aspecto vulnerable”22. Essa ação também marca seu primeiro conflito direto com o poder, uma vez que é interrompido pela polícia e tem que pagar uma multa por tumultuar a ordem pública.
Outro ponto importante na trajetória de Brus é quando, em 1966, em parceria com Mühl desenvolve a «ação total», na qual unificam as «ações materiais» de Mühl com as automutilações de Brus, com o objetivo de unir arte e realidade pela desvinculação de todos os meios artísticos tradicionais:
Los viejos géneros artísticos tratan de reconstruir la realidad, la acción total se efectúa en la realidad. La acción total es un proceso directo (arte directo), no la reproducción de un proceso, el encuentro directo del inconsciente y la realidad (material). El actor atúa y se torna él mismo material: tartamudear, balbucir, mascullar, gemir, resollar, gritar, chillar, reír, escupir, morder, arrastrarse, cubrirse de material.23
A fase das «ações totais» serão determinantes para suas ações denominadas «Análise corporal» nas quais abandonará qualquer tipo de material pictórico, centrando-se diretamente em seu corpo, suas funções e secreções. Nessas ações, “plantea centrarse en ámbitos especialmente tabúes de la sociedad: procesos de excreción, secreciones y excrementos”24. Günter Brus ao colocar as questões existenciais como a vida, a dor e as funções fisiológicas em evidência não necessita mais do pincel e da tinta para criar um traço, para isso ele se autolesiona. Do mesmo modo, a cor virá das substâncias que ele mesmo produz: sangue, secreções e excrementos. “El análisis corporal no necesita símbolos, desde ahora es el propio cuerpo, sus funciones, reacciones y excrementos los que constituyen el médium”25. Portanto, nas atuações relativas às Análises corporais, Brus não quer que nenhum elemento simbólico como possa alienar o público de sua ação, do modo como ocorria anteriormente com a utilização da tinta no próprio corpo, como por exemplo nas Autopinturas. Segundo Solans26,
Las acciones de Günter Brus, llamadas «análisis corporal» (Körperanalysen) no tienen un carácter simbólico. El cuerpo, el espacio y los objetos son signos fisiopictóricos que articulan una creación lingüística y semántica expresiva por sí misma. El cuerpo de Brus no existe sino como una semiótica o gramática de signos cuya unidad básica, elemental, expresiva, es la máxima tensión del gesto mínimo. [... ] Los objetos de agresión (chinchetas, tijeras, alambres, clavos, cuchillos) marcan los signos de una gramática corporal y de una estructura conceptual que no trata de desvelar un sentido, ni tampoco d producirlo, sino de alterarlo, destrozarlo, forzarlo, destruirlo. No se trata de crear significados, sino cortar, herir, rajar la significación.
Na fase das Analises corporais, o último ciclo de ações de Brus, duas de suas ações merecem especial destaque. A primeira refere-se a sua trigésima terceira ação realizada no ato Kunst und Revolution (Arte e Revolução) promovido pela Associação de alunos socialistas austríacos em 1968, ato no qual participaram também Otto Mühl, Peter Weibel, Oswald Wiener e o Direct Art Group. Para um público de aproximadamente quatrocentas pessoas, Brus tirou a roupa, se cortou com uma lâmina de barbear, bebeu sua própria urina, provocou o próprio vômito colocando o dedo na garganta, defecou e se esfregou nos seus excrementos e, finalmente, se masturbou ao som do hino nacional austríaco. Esse ato se configurou como um grande escândalo para a sociedade austríaca e teve como conseqüência a detenção de seus participantes por dois meses de prisão preventiva, com a justificativa de que os mesmos haviam degradado os emblemas da nação austríaca e haviam atentado contra a ordem pública. Sob uma condenação de seis meses de prisão e a alcunha midiática de “o austríaco mais odiado”, Brus foge com sua família para Berlim, aí permanecendo até 1976, quando Anni consegue converter sua prisão no pagamento de uma multa e ele pode finalmente retornar a Áustria. Em Berlim, juntamente com Nitsch, Weiner, Rühm e Bauer, Brus criará o “Governo Austríaco no exílio”, com o objetivo de protestar contra a repressão de Viena. A revista Die Schstrommel, com seus dezessete números, será o periódico do grupo e se caracterizará como o veículo central de expressão da vanguarda austríaca no exílio.
A outra ação de destaque do período das Análises corporais é a chamada Zerreissprobe (Prova de resistência, 1970) realizada em Munique e que marca o final de sua fase acionista, como o próprio artista anuncia em suas anotações preparatórias: “ Una prueba de resistencia para los nervios significa un cambio radical de una tendencia de actuación, la interrupción abrupta de una actuación que está en marcha”27. Nessa ação, Brus surge completamente depilado e vestido somente com roupa íntima feminina, no transcurso da ação acabará totalmente nu e manchado com o sangue resultante das lesões que severamente desfere contra si mesmo. Trata-se de sua ação mais intensa, na qual leva as automutilações ao limite de superação da própria dor e se houvesse continuidade seu fim seria a morte: “si ha habido un cuerpo al límite de la muerte, ha sido el de Günter Brus: ello le confiere una autoridad para renunciar al arte – en el sentido más sublime o más abyecto -, la admiración y la congruencia”28.
Com o fim de sua fase acionista em 1970, Brus considerava que havia esgotado todas as possibilidades estéticas relacionadas ao próprio corpo e, na intenção de dar a seu pensamento e a suas sensações a possibilidade de expressão através de meios convencionais, passa a dedicar-se intensamente ao desenho e a escrita, mantendo, porém, a mesma temática do obsceno, da dor, da crueldade, das violações do tabus e da crítica ao poder, através de uma expressão gráfica agressiva e provocadora e ao mesmo tempo hiperrealista e fantástica.
A arte, em especial a pintura, segundo a teoria desenvolvida por Pere Salabert, deve ser vista sob uma perspectiva tripla: representação, significação e presentação. A representação está de acordo com a forma na arte e tende a evitar a carga material das imagens em proveito de uma função mais ilusória, a significação é relativa ao processo que leva a significar algo em concreto e a presença fica a cargo da materialidade.
Na representação, a forma é fundamental para a arte e a matéria tem um caráter não presencial, sendo «representada» de maneira a criar um efeito ilusório, afirmando a ausência da coisa representada, isso é a desubstancialização da matéria, desse modo a forma passa a ser abstraída do corpo. Nesse sentido, o real está inexistente, há, porém, um conceito de real racionalizado como, por exemplo, no Renascimento através dos cálculos matemáticos e da convenção da perspectiva que criam obras onde se tem a sensação de que existe um outro mundo, uma cópia «purificada» do nosso mundo. O fato do artista conservar as formas aniquilando a materialidade das coisas reflete a necessidade da atemporalidade, da inalteralidade das coisas, com uma “aparencia de vida ajena a la degradación fisica”29, os artistas tentam paralisar a vida, encerrar a natureza e interromper o tempo.
Na arte renascentista o signo é a forma depurada da matéria para criar o efeito ilusório da imagem e assim conseguir a representação da realidade no modo mais «puro». Na arte barroca, esse efeito ilusório permanece, porém assume um outro sentido em relação a representação da realidade: a estrutura do signo, ou seja a aparência sensível das coisas, se modifica, pois enquanto na arte renascentista não é possível notar a marca do pincel e da capa pictórica, na arte barroca esses elementos serão claramente visíveis, indicando um direcionamento à materialidade da arte. Como exemplo, tem-se Rembrandt (1606-1669) que produz as formas através da textura das pinceladas, criando com isso um efeito ilusório da realidade distinto do efeito criado pelas obras renascentistas. Além disso, a partir desse momento, o artista através da evidência das marcas do pincel ou dos dedos na pintura se faz presente.
Observa-se, portanto, que na medida em que a História da arte avança, a racionalização do real e a desusbstancialização da matéria vai desfazendo-se pouco a pouco para chegar ao retorno da realidade mesma através do uso da matéria em si, como nos mostra a arte contemporânea. Isso se dá pelo jogo que ocorre entre a representação do signo e presentação (presença) do signo que resultam numa maior ou menor significação do signo, como resultado tem-se que um Rembrandt parecerá mais real que um Caravaggio (1571-1610), que parecerá mais real que um Mantegna (1431-1506) e assim sucessivamente. O que não deve ser esquecido é que sempre toda forma artística está integrada por signos e estes têm uma presença, porém, em alguns casos essa presença quer passar despercebida como no Renascimento (ilusória), ou seja, como se não houvesse alguém por trás da produção das obras e em outros, ao contrário, a presença é a própria justificativa da obra, como no acionismo vienense ou na body-art, nos quais a matéria mesma se faz presente, mas do que isso, o próprio corpo do artista e suas secreções (sangue, suor, lágrima, urina, sêmen, fezes etc.) é a obra de arte.
. Essa relação é contraditória ao que sustenta o filósofo espanhol José Ortega y Gasset30, para quem a arte moderna se afastava da realidade, ao perder a sua forma enquanto elemento reconhecível e deixar de lado os temas tradicionais da vida cotidiana que até então faziam parte do arsenal artístico. Para este pensador, como sugere o título do seu livro, a arte se desumaniza, pois os artistas tendem a desconsiderar o aspecto da realidade vivida e do seu cotidiano. Já para Salabert, a arte se aproxima da realidade justamente pela ênfase na matéria mesma, a sua presença se torna muito mais «viva» do que a sua representação.
A «evolução» da arte, proposta por Salabert, no sentido da busca da realidade através da presença, ou seja, através do uso da matéria como a própria obra de arte, não só é possível de ser verificada na História da arte, como também na trajetória de alguns artistas. Nesse sentido, a produção artística obra Günter Brus, desde suas pinturas gestuais até suas análises corporais (1960-1970), se mostra categórica, porque nela é possível verificar essa evolução, essa busca pela presentificação, na qual a materialidade se dá pela intensidade em que o corpo vai se fazendo presente.
Na fase das pinturas gestuais, Brus ainda atua com materiais pictóricos sobre a superfície bidimensional. Não obstante, seu corpo de maneira indireta já está presente em suas pinturas, uma vez que aproveita toda a sua gestualidade e expressão corporal para realizar as obras, com o objetivo de traduzir o movimento em visualidade. Mesmo em seus primeiros trabalhos, feitos com lápis sobre papel, a necessidade de se colocar na obra era tanta que Brus, a maneira de Fontana, rompia o papel, mostrando a organicidade da superfície em que atuava e marcando a sua presença na obra realizada. Nas suas pinturas, a presença do corpo do artista vai paulatinamente assumindo-se como elemento central da obra e a pintura não se limita mais a uma tela, ao contrário, expande-se ao espaço como um todo, como pode ser verificado na sua obra intitulada Pintura para um espaço labiríntico (1963).
A partir dessa obra, como já dito anteriormente, Brus se encaminha para as suas ações, nas quais o corpo não mais se enuncia, como nas pinturas gestuais, mas, ao contrário, passa a ser a própria obra. Porém, mesmo na sua trajetória acionista é possível verificar uma intensificação da presença do corpo no decorrer das distintas fases que compõe essa trajetória. Na sua primeira ação, denominada Ana (1964), Brus se cobre com tiras de tecido na intenção de mostrar que o corpo assume o papel de «tela» e que, portanto, a pintura se dará sobre ele e sobre o espaço em que o mesmo se encontra, como se a clássica tela branca se ampliasse a terceira dimensão. Como em suas pinturas gestuais, o preto será a cor usada para pintar seu próprio corpo, o espaço e o corpo de Anni e assim concretizar a sua «pintura viva». Note-se, porém, que Brus ainda utiliza-se de material pictórico (tinta branca e preta) e o corpo é utilizado somente como suporte da pintura, não protagonizando a ação, uma vez que o corpo tem a mesma importância que os elementos que o rodeiam e que o espaço em que se encontra.
Na fase das Autopinturas e Automutilações (1964-1965), apesar de ainda se utilizar de materiais pictóricos o corpo já começa a ser protagonista da ação, lentamente deixando de ser simplesmente suporte para a pintura. Isso se dará de forma muito mais conceitual do que prática: o corpo e suas sensações não atuam diretamente na ação, pois não há nenhum processo efetivo de mutilação e de dor, bem como não se utiliza das substâncias produzidas pelo próprio corpo, porém a colocação estratégica de instrumentos como machados, tesouras, facas e lâminas de barbear indicam a sua vulnerabilidade, ou seja, indicam o protagonismo que o corpo poderia assumir dentro da obra caso os instrumentos presentes fossem utilizados.
Na última fase de suas ações, Brus abandonará totalmente os materiais pictóricos para colocar o corpo em total evidência, a partir de então o corpo, e somente ele, será o protagonista da obra. A cor será resultado das secreções que ele produz: sangue, urina, sêmen, excrementos etc., e o movimento será a reação do corpo aos processos pelos quais é submetido. Nesse momento, os instrumentos, antes com sua ação enunciada, agora são efetivamente utilizados. O corpo passa então a ser a própria obra de arte, pura matéria, presença viva, a realidade em si mesma. Na trajetória artística de Brus, a presença pura do corpo como obra de arte encontrará seu ápice na sua última ação Prova de resistência (1970), na qual seu próprio corpo é submetido às várias mutilações que o levam ao limite da dor e da autosuperação.
A obra acionista de Günter Brus se apresenta, portanto, numa crescente presença do corpo como centro da obra de arte, que é possível de ser vislumbrada como uma linha evolutiva, tendo bem marcados os seus pontos de início, meio e fim. Desse modo, sua trajetória acionista corrobora, com a idéia de uma arte suculenta, que para Salabert31 significa: “este arte que interroga nuevamente el cuerpo, que recupera la materia, impulsa su retorno al tiempo y la mundanidad y por tanto indaga la corrupción. Arte suculento: substancialidad de la carne, presencia copiosa, cuerpo opulento”. Brus, desse modo, humaniza a arte e faz com que a busca vanguardista, de unir arte e vida, se concretize.