Michel Foucault sustentou ao longo de sua investigação que no processo de constituição e funcionamento das ciências humanas, ao contrário do que normalmente se postula, não houve descoberta de uma verdade específica do homem.
Seja utilizada, a modo de exemplo, a psicologia objetiva do início do século XIX. Segundo a história tradicional dessa ciência, a verdade do homem louco foi finalmente descoberta quando o conceito de loucura passou a ser pensado como déficit das faculdades mentais e objetivado como doença mental. Desde então, a verdade atual desse novo objeto constitui critério fundamental para avaliar o que foi dito no passado sobre a loucura.
Para Foucault, a doença mental é apenas ponto de chegada, jamais ponto de partida. Em vez de constituir a verdade final do louco, ela funciona como o capítulo mais recente da legitimação e justificação racional de práticas históricas e contínuas de repartição e distribuição daqueles indivíduos assim desqualificados pela razão ocidental. O conhecimento analítico da doença mental tem como condição um fundo histórico obscuro e nebuloso de seqüestro do louco. Entende-se porque o autor de Histoire de la folie (1972) toma distância dos critérios tradicionais de legitimação da verdade quando se refere às chamadas ciências humanas: elas permanecem no interior das condições de legitimidade do seu próprio conhecimento, não descendendo ao solo histórico que as constitui.
História política dos modos de veridição: eis como Foucault nomeia sua investigação nos anos 1970. Ele deixa de lado o balizamento da possibilidade dos enunciados verdadeiros situados no nível da proposição, para debruçar-se na dramatização da enunciação, no acontecimento histórico de sua produção. Renuncia interrogar a verdade a partir das condições e limites do sujeito de conhecimento, preferindo abordar os modos históricos de veridição (FOUCAULT, 1981), a saber, mecanismos e procedimentos, estratégias e táticas de poder que atuam na produção de discursos qualificados como verdadeiros e na desqualificação de outros, como falsos.
Ao prescindir saber como um sujeito universal pode conhecer um objeto em geral, indaga-se em que sentido os sujeitos são constituídos pelos modos de veridição e por que a eles se submetem. Abandona-se a meta de conhecer o conhecimento, determinar o mecanismo das ilusões ou das ideologias, a economia interna dos erros ou das faltas lógicas que puderam produzir o falso. Sublinha-se como um modo de veridição pôde emergir na história e em quais condições.
Procuramos estudar na investigação de Michel Foucault os modos plurais de obrigação mediante os quais os sujeitos se vinculam com os discursos de verdade; especificar as regiões às quais eles se aplicam e o domínio de objetos que fazem surgir; identificar relações, conexões e interferências entre eles estabelecidas. De modo especial, são analisados os universos da loucura e do desejo. Contudo, evita-se saber se o discurso dos psiquiatras é ou não verdadeiro, se bem que tal problemática seja completamente legítima; prescinde-se determinar a qual ideologia pertence os enunciados dos psicanalistas e confessores, embora seja igualmente uma questão interessante. Limita-se o trabalho na interrogação dos modos de dizer verdadeiros e suas justificações, quando se trata da enunciação do louco e da confissão do pecador.
Nesse item são envidados esforços para apontar como nas práticas de enunciação do eu, conhecidas também como práticas confessionais, tem-se como efeito de verdade a formação das ciências humanas modernas, e como efeito de poder, a sujeição da subjetividade. São destacados os modos pelos quais os sujeitos são constituídos a partir da obrigação de enunciar verdades sobre eles próprios.
A perspectiva de que a verdade vincula e obriga no ato de sua enunciação normalmente proporciona estranhamento ao discurso científico-filosófico. Para esse discurso, se o indivíduo quiser ser operador da exteriorização da verdade precisa deixar de agir em função de uma obrigação. A verdade se basta ao elaborar sua própria lei e seus critérios específicos, sem quaisquer constrições exteriores. É pelo critério da evidência que a manifestação do verdadeiro e a obrigação que o indivíduo tem de reconhecê-lo como tal coincidem. A evidência constitui a demonstração por excelência de que inexiste a necessidade de outro regime de verdade que se agregaria ao verdadeiro. “O próprio verdadeiro constitui seu regime, determina sua lei e me obriga.” (FOUCAULT, 1980) Como em Espinoza, a verdade é index sui: somente o jogo entre o verdadeiro e o falso indica o verdadeiro. 1
Conforme Foucault, se a verdade é index sui não significa que seja extensivamente rex sui e lex sui. Penso ser esse um diferencial de sua perspectiva em relação à idéia de verdade auto-referencial. Ele chega a afirmar que a evidência é irredutível à ordem lógica da constatação e da dedução da verdade e do erro; ela também é produzida como evidência pelo éngagement do sujeito racional. A verdade deixa de ser detentora do direito a ser exercido sobre os homens e das obrigações que eles têm diante dela; ela não administra seu próprio império ao julgar e punir aqueles que deixam de obedecê-la. “Não é verdade que a verdade obriga apenas pelo verdadeiro”. (FOUCAULT, 1980)
A verdade resulta ininteligível sem o éngagement do indivíduo e sua sujeição consentida. De onde a seqüência: “Se for verdadeiro, logo me inclinarei”; “é verdadeiro, logo me inclino”; “é verdadeiro, logo estou vinculado”. (IBID.)
A conclusão anterior está distante da ordem da proposição lógica que obriga efetivamente; pelo contrário, alguém pode enunciar esse logo somente se atua como parceiro do jogo do verdadeiro e do falso. Noutros termos, há na proposição lógica um regime de verdade 2 mascarado cuja evidência é não-evidente porque outro regime - aquele da demonstração lógica - tem adquirido nas ciências e na filosofia poder de obrigação.
O logo explícito cartesiano tem como único regime de verdade sua força intrínseca. Contudo, por detrás desse logo explícito há outro implícito cujo regime de verdade é irredutível aos caracteres intrínsecos do verdadeiro: trata-se da aceitação de um regime de verdade.
Para que um regime de verdade seja aceito e justificado é preciso que o sujeito que pense seja qualificado. Ele pode estar suscetível a quaisquer erros, ser iludido pelos sentidos, estar submetido ao gênio maligno que o engana; no entanto, permanece uma condição fundamental para que o “penso, logo existo” tenha valor probatório: é preciso que diante da evidência o sujeito submeta-se àquele regime de verdade e, para tal, jamais ele pode ser louco.
A exclusão da loucura é condição fundamental no regime de verdade que se impõe pelo poder da evidência. Este precisa operar o esquecimento da exclusão da loucura para que os indivíduos reconheçam-no como evidente, sem questionar seu caráter obrigatório. Eis uma das razões pela qual, na filosofia ou em qualquer outro sistema racional, os loucos são excluídos a fim de que não rejeitem aquele regime de verdade científico-filosófico. A verdade resulta num jogo vinculante: constrange e obriga na medida em que é imposta como verdadeira, excluindo outras possibilidades.
Se o regime de verdade científico-filosófico da evidência tem como condição efeitos de poder que o purificam mediante práticas excludentes, algo semelhante ocorre com a formação das ciências humanas. Significa que aquilo por elas denominado de objetividade está condicionado pela história constringente e complexa de atos de verdade que se impõem em função da obrigação de dizer a verdade. Da imanência entre regimes de verdade e efeitos de poder resulta a genealogia das “políticas de verdade” (FOUCAULT, 1976, p. 81) em torno das práticas confessionais. Examinar os atos de verdade observados em tais práticas implica deter-se naquilo que eles permitem legitimar, justificar e reproduzir.
Embora quaisquer práticas coercitivas reclamem sua verdade não é dela que se trata, mas dos efeitos de poder que ela proporciona, tal como sua capacidade de justificar racionalmente distribuições, classificações e identificações. A peculiaridade das práticas confessionais, abordadas a seguir, reside nisso: nelas a enunciação do indivíduo sobre si mesmo figura como mecanismo operador da verdade, na medida em que produz identidades sujeitadas.
Num conjunto de conferências inéditas realizadas na Universidade de Louvaina (1981) intituladas Mal fare, dire vrai. Fonctions de l’aveu, Foucault pretende explicar o que significa o termo aveu em relação às práticas confessionais, utilizando como amostragem um episódio no domínio da psiquiatria de 1840 relatado pelo médico Leuret, dedicado ao tratamento moral da loucura. 3
De modo algum, pretende-se propor uma genealogia da psiquiatria. Constitui escopo específico exemplificar a articulação anteriormente proposta entre enunciação do eu e produção de verdade; tal incursão visa ainda compreender melhor a conhecida frase de Foucault de meados da década de 1970, segundo a qual no Ocidente “a confissão da verdade se inscreveu no cerne dos procedimentos de individualização pelo poder.” (FOUCAULT, 1976, p. 78-79)
No livro de Leuret narra-se o caso de um doente, nomeado Sr. Dupré, acometido de delírios de perseguição e contínuas alucinações. Para tratá-lo, Leuret o conduz a permanecer de pé sob uma ducha. A partir de então tem início o interrogatório no qual o médico obriga o suposto doente a relatar detalhadamente seu delírio.
Eis como Foucault resume esse diálogo:
Doutor Leuret:
- Não há uma palavra verdadeira em tudo isso; o que você diz, são loucuras. E é porque você é louco que está internado em Bicêtre.
Doente:
- Não acredito estar louco. Sei o que vi e escutei.
Médico:
- Se quiser que eu esteja satisfeito com você, é preciso obedecer, pois tudo o que lhe pergunto é razoável. Você promete não mais pensar nas suas loucuras? Você promete não falar mais delas?.
O doente promete, com hesitação.
Leuret:
- Você me faltou com a palavra, seguidas vezes, sobre esse ponto; não posso contar com suas promessas; você vai permanecer sob a ducha até confessar (avouer) que tudo o que você diz é apenas loucuras.
E se lhe faz cair uma ducha gelada sobre sua cabeça. O doente reconhece que suas imaginações eram apenas loucuras. Porém, agrega:
- Reconheço isso porque sou forçado.
Nova ducha gelada.
- Sim, senhor, tudo o que lhe disse são apenas loucuras.
- Você foi louco? Pergunta o médico.
- O doente hesita:
- Não creio.
Terceira ducha gelada.
- Você foi louco?
Doente:
- Ver coisas e escutar vozes significa ser louco?
- Sim.
Então o doente acaba dizendo:
- Não havia mulheres que me injuriavam, nem homens que me perseguiam. Tudo isso é loucura. (FOUCAULT, 1981)
Por meio da passagem supracitada Foucault estuda a peculiaridade da prática de enunciação do eu (aveu) e sua relevância na produção da verdade.
Vale ressaltar que Leuret não obriga Dupré a confessar suas faltas ou pecados; tampouco o que confessa é algo desconhecido ou invisível, porquanto Dupré é manifestamente louco: ele já teve um delírio ao longo do interrogatório e o médico está convicto de sua loucura.
A distinção entre reconhecimento da loucura e declaração de que se é louco deixa de ser o que distancia o desconhecido do conhecido, o invisível do visível. Exige-se ademais um custo de enunciação. O reconhecimento consiste na passagem do não-dito ao dito, sempre que o não-dito tenha um sentido preciso, um motivo particular e um valor importante. Para Dupré, recusar a declaração de que é louco significa fundar a exigência do reconhecimento como ponto de partida. Analogamente, quando alguém faz uma declaração de amor, ela designa um aveu se o fato de declará-la trouxer para ele riscos significativos.4
Entretanto, isso não basta. Quando Dupré diz: “Reconheço isso [que sou louco] porque sou forçado”, trata-se de uma declaração de bom senso, porquanto sob a ducha fria ele é coagido a reconhecer sua loucura. Insensata, embora interessante, é a reação do médico. Ele submete Dupré a outra ducha fria para que depois, com plena liberdade, ele reconheça sua identidade de louco. Trata-se de pretensão conhecida do poder, que tenta primeiro coagir aqueles que, em seguida, submete em estado livre. Somente há reconhecimento em estado livre, como já se sabia na época da Inquisição: para que as declarações extraídas sob tortura fossem consideradas confissões, era preciso repeti-las após o suplício. A confissão adquiria efeitos morais, jurídicos e terapêuticos se efetivada em estado de liberdade por parte de quem confessava.
Aveu constitui uma espécie de éngagement do sujeito em relação ao reconhecimento da verdade que confessa. Engajamento não no sentido de estar obrigado a fazer tal ou qual coisa, mas de tratar de ser o que confessa ser, justamente porque é isso ou aquilo, louco ou não-louco. Tal redundância, característica do termo aveu, ocorre também na declaração de amor. Se ela trata simplesmente de apontar um estado de fato, a frase “eu te amo” não passa de simples afirmação. Em compensação, se ela implica que o sujeito deva comprometer-se a amar alguém, eis um juramento que pode ser sincero ou não, embora não seja verdadeiro ou falso. Quando a frase “eu te amo” funciona como aveu passa-se do não-dito ao dito transformando-se voluntariamente em dizer amoroso mediante a afirmação de que, de fato, se ama.
Analogamente, aquele que reconhece ter cometido um crime envolve-se na autoria do crime. Quer dizer, não apenas aceita a responsabilidade do crime como ainda funda tal aceitação no fato de que o cometeu. No aveu, aquele que fala engaja-se em ser aquilo que diz ser; obriga-se a ser aquele que fez tal coisa ou que provou algum sentimento. Dupré engaja-se com sua loucura na e pela confissão.
No entanto, tais designações são ainda insuficientes para caracterizar a confissão no sentido de aveu. Quando Dupré confessa que “tudo isso é loucura” é porque cede. Acaba reconhecendo o que não queria dizer. Ao fazê-lo, porém, dá vazão ao poder que o médico pretende exercer sobre ele; então, aceita e se submete. Ora, é justamente esse reconhecimento que Leuret procura obter a fim de aproveitar-se do suposto louco e exigir que o obedeça.
Portanto, somente há aveu numa relação de poder quando ocorre a confissão daquele que a ela se submete. Caso dos contextos institucionalizados, como na confissão judiciária ou na confissão católica. Não se trata, porém, da mesma coisa nas relações flutuantes e móveis: para que a declaração “eu te amo” seja aveu é preciso que aquele para o qual ela está dirigida aceite-a ou recuse-a. O aveu suscita ou reforça relações de poder exercidas sobre aquele que confessa, razão pela qual somente há confissão, declaração ou reconhecimento verdadeiro se forem difíceis de serem confessadas, declaradas e reconhecidas.
Há um caráter da confissão difícil para ser delimitado. Quando Leuret coage Dupré para que confesse que “tudo aquilo é loucura”, sabe que ele não deixará de ser louco apenas pela prática da confissão. Muito pelo contrário, o médico deseja coagi-lo para que aceite seu estatuto de louco. Considera que o fato apenas de dizê-lo e de reconhecê-lo constitui passo fundamental para que o doente modifique a relação com sua loucura, com sua maneira de ser louco e, portanto, alcance a cura. 5 Analogamente, se o criminoso que confessa um crime não pode ser julgado de igual maneira que outro criminoso cujo reconhecimento do ato foi estabelecido por meio de prova ou acusação é porque se supõe que o reconhecimento (aveu) do ato modifica a relação que ele tem com seu crime. (FOUCAULT, 1994c, p. 144) Da mesma forma, confessar amar alguém é começar a amá-lo (a) de outro modo; caso contrário tratar-se-ia simplesmente de informar os sentimentos que se tem. Ao vincular o sujeito à obrigação de verdade daquilo que enuncia, o aveu qualifica-o diferentemente: criminoso, mas talvez suscetível de arrepender-se; apaixonado, mas declarado; doente, mas suficientemente consciente de sua doença, de modo que ele mesmo possa empreender seu processo de cura.
Em suma, aveu designa o ato verbal pelo qual o sujeito, mediante reconhecimento sobre o que é ou fez, ata-se a essa verdade, coloca-se em situação de dependência a outrem e, por esse mesmo dizer, modifica a relação consigo.
A constituição do sujeito pela enunciação de sua própria verdade configura o efeito de uma relação de poder e por isso se trata de subjetivação sujeitada. O vínculo entre o sujeito e sua verdade é estabelecido em virtude dos mecanismos do saber-poder. A afirmação: “sou louco”, pronunciada pelo paciente é performativa, sua enunciação está desvinculada de quem enuncia, embora opere a cura e realize o fim para o qual se propunha. A cura tem como condição suficiente a verbalização que reconhece a loucura. O gesto de dizer algo qualificado de verdadeiro adquire função precisa no próprio indivíduo que confessa.
Além do reconhecimento verbal da loucura o médico exige como momento decisivo que o doente escreva sua história de vida: tudo o que lembra da infância, o nome dos liceus onde estudou, bem como de seus mestres e colegas. Em tais narrativas, comumente o louco não falsifica o que lembra, ao contrário da confissão.
Exigência fundamental da produção de verdade é que o doente se dobre diante de sua própria história, reconhecendo-se numa série de identidades constituídas ao longo de episódios concernentes à sua existência. A verdade autobiográfica está acompanhada de inúmeras obrigações, tais como o sistema da família, do emprego, do estado civil e da observação médica. O louco precisa confessar esse corpus que constitui sua identidade; quando o faz, um dos momentos mais fecundos da terapêutica é posto em prática; em contrapartida, quando deixa de fazê-lo, perde-se a esperança da cura.
O propósito de Leuret excede a anulação do delírio ou a destruição da loucura. Antes, procura obter tais efeitos por outro meio: em vez de persuadir o doente de que ele não é louco, o médico zomba totalmente do que ocorre na sua consciência. Leuret deseja um ato de verdade preciso que consista na pronúncia da frase: “eu sou louco”. Ao confessar, o sujeito não apenas diz a verdade sobre sua identidade, como ainda faz atuar tal enunciação nas suas relações com os demais, submetendo-se àquela verdade pelo único fato de que foi efetivamente dita.
Convém saber por que nos séculos XIX e XX há a animosidade crescente em torno da exigência de discursos de verdade sobre si mesmo? A tal questão, quando se trata de discursos científicos, tem-se o hábito de procurar a resposta nas necessidades econômicas e sociais, como se a verdade científica possuísse suas próprias tecnologias produtoras. Para Foucault, no que concerne a essa estranha verdade que o sujeito deve produzir sobre si, não parece convincente tal caminho.
Interessa antes saber por que se quis tanto no Ocidente vincular o sujeito à sua verdade, por sua verdade e pela enunciação de sua verdade. Se de um lado constitui uma questão jurídica e institucional investigar de que modo o sujeito encontra-se vinculado e submete-se ao poder que é exercido sobre ele, de outro, figura como problemática política e histórica estabelecer como ele está atado à sua identidade mediante atos de verdade determinados. Na abordagem genealógica das práticas confessionais prescinde-se da dimensão jurídico-institucional para privilegiar seu aspecto histórico-político.
Na Modernidade, houve a proliferação exacerbada da verbalização do sujeito sobre si mesmo como meio de produção de sua identidade verdadeira. Para Foucault, a insistência em tal estratégia não objetiva apenas a tentativa de cura para doenças psíquicas ou a libertação da sexualidade reprimida. Ela faz parte de mecanismos de poder que atuam em nossa sociedade produzindo verdades e sujeitando os indivíduos.
A perspectiva de que a verdade das ciências humanas jamais é índice de si mesma, de que ela depende da articulação entre regimes de poder e regimes de verdade e de que ela reconduz a um exterior de índole histórica e política que antecede seu estatuto epistêmico, desconstrói aqueles discursos modernos que afirmam ser a sexualidade a verdade da identidade de alguém.
Michel Foucault trata desse deslocamento estratégico em Histoire de la sexualité, I: La volonté de savoir (1976). Aí aponta que os discursos de verdade em torno da sexualidade são insuficientes se explicáveis apenas pelo seu viés epistemológico, na medida em que tal objeto de saber nem sempre existiu, de modo a ser adequadamente apreensível apenas por uma história política que apresente sua emergência, funcionamento e transformações. 6
Em Histoire de la sexualité, I, sexo difere de sexualidade. Inicialmente, o discurso da sexualidade não se aplicava ao sexo, mas “ao corpo, aos órgãos sexuais, aos prazeres, às relações de aliança, às relações interindividuais...”. (FOUCAULT, 1994c, p. 313) A transformação ocorre a partir do final do século XVIII, quando a sexualidade torna-se “dispositivo” de verdade7, regime de saber-poder que toma o sexo como objeto privilegiado. A sexualidade deixa de referir-se à organização fisiológica do corpo ou ao comportamento sexual, constituindo-se no prolongamento do modo pelo qual o poder investe aspectos fundamentais da vida dos indivíduos por meio de discursos e práticas.
O dispositivo de sexualidade é o mecanismo de poder cujo efeito é a constituição da verdade do sexo. No discurso das ciências humanas, tais como a sexologia e a psicologia, ele atua como produtor de identidades. A verdade da identidade deixa de ser explicável em termos de natureza humana ou de traço antropológico, sendo efeito da articulação entre saber-poder.
Analogamente ao que ocorre com a confissão da loucura, empreender a história da sexualidade significa distanciar-se da história das idéias em torno de um objeto trans-histórico com o objetivo de apontar sua emergência e suas transformações. Tal estratégia tem sido reiterada nesse estudo, na medida em que a verdade de um objeto só pode ser delimitada ao perguntar como ele foi constituído, qual é sua história e não como é desvelado na sua origem essencial e pré-existente.
Michel Foucault considera-se um “empirista cego” (1994c, p. 404), de modo a prescindir do sujeito doador de sentido, de objetos definidos e de instrumentos conceituais já prontos no início de suas análises. Antes, fabrica instrumentos destinados a apontar a emergência dos objetos e suas transformações, de modo que a verdade daqueles objetos depende da verdade dos instrumentos que elabora.
Para o genealogista, a história não é apenas objeto de historiografia, no sentido de que ela concerne exclusivamente sobre a verdade dos fatos. Ela designa sobretudo a estratégia de construção de ficções por parte de uma cultura como mecanismo de sua autocompreensão.
Abordar as discursividades em torno do sexo de modo algum significa posicionar-se contra as instituições, como a da família. Michel Foucault nunca faz a história das instituições, mas de suas tecnologias; pretende saber quais são os procedimentos utilizados pelo dispositivo da sexualidade na objetivação do sexo e seu desdobramento na constituição da identidade verdadeira de alguém.
Segundo a “hipótese repressiva” (FOUCAULT, 1976, p. 23-68), atribuída por Foucault a Reich e a Marcuse, há no interior da sexualidade uma verdade latente à espera de ser revelada, de modo que se permanece lá escondida é porque está sob a força de um poder repressivo que a impede de ser enunciada. Segue o aspecto redentor da contínua discursividade em torno do eu cuja tarefa é libertar tal verdade reprimida, ao mesmo tempo em que o poder insiste em mantê-la obscurecida. Conseqüentemente, “a verdade não pertence à ordem do poder, mas tem parentesco originário com a liberdade” (FOUCAULT, 1976, p. 80); liberdade que se exterioriza pela verbalização incessante de tudo aquilo que o poder tenta ocultar. Discursar sobre a sexualidade tem como efeito escapar das amarras do poder e encontrar o verdadeiro eu. Onde há verdade e liberdade, não há poder e sua característica recorrente que é a repressão.
Foucault não nega a repressão da sexualidade. Apenas considera insuficiente a suposição de que o poder sempre reprime ocultando a verdade, enquanto que a discursividade do eu infalivelmente libera a verdade do indivíduo escondida nos seus desejos (sexuais) recônditos. A reflexão em torno do poder é irredutível ao tema da repressão. Faz-se necessário salientar o lado positivo das relações de poder e do seu exercício, no sentido de que induzem e produzem aquilo que normalmente é qualificado de verdadeiro. Para o genealogista, inexiste qualquer verdade livre e escondida por natureza nos desejos sexuais que tenha necessidade de ser verbalizada e interpretada para que o indivíduo tenha conhecimento de sua identidade.
O desejo sexual designa aquilo sobre o qual se confessa e não aquilo que permanece escondido. Ele tem sido escondido com esmero em função da insidiosa obrigação histórica de confessá-lo (FOUCAULT, 1976, p. 82). Daí o projeto infrutífero de fazer a história das diversas formas da verdade natural do sexo mediante a interpretação dos desejos. É imprescindível antes empreender a história política dos discursos que se escondem detrás da suposta verdade do sexo. O sexo configura uma realidade produzida historicamente a partir da constituição política de diversos discursos. 8
Na Modernidade, em vez da coação em confessar a verdade do sexo, se a estimula; ao contrário da economia nas palavras, há explosão de discursividades em torno dos desejos sexuais. O século XIX inventou um novo prazer sexual irredutível ao fazer sexo; trata-se do prazer proporcionado pela enunciação exaustiva dos pensamentos, obsessões, desejos e imagens sexuais.
Desde o cristianismo do século IV a verdade do sujeito configura desdobramento da confissão de seu ser desejante. Contudo, esse mecanismo de produção da verdade limita-se a um modo de vida específico, que é a vida monástica. Seria temerário pensar que ali ocorre a disseminação de tal prática nas diversas instâncias da vida social, associada a um novo prazer.
Em Les anormaux, Michel Foucault destaca que a partir do século XVI a prática confessional como meio de produção da verdade do desejo prolifera nos diversos tipos de interrogatórios, consultas e narrativas autobiográficas, de maneira que é adequado caracterizá-la como colonização da vida interior.
Contrariamente ao que normalmente se pensa, nesse momento não principia o processo de descristianização, quando a idade sombria do mundo medieval cede lugar à idade das Luzes, ou a era religiosa é deslocada pela secular (FOUCAULT, 1999, p. 157-186). J. Delumeau rejeita tal separação e sublinha a intensificação da religião cristã no início da era moderna em razão da luta entre católicos e protestantes. 9 Da Reforma Protestante à Inquisição, passando pelo Concílio de Trento (1545-1563), ocorre uma “cristianização em profundidade” (FOUCAULT, 1999, p. 174) cujo efeito é a “gigantesca interiorização” (IBID., p. 179) centrada na prática da confissão e no redirecionamento do pecado da carne em torno do corpo. (IBID., p. 175)
No que concerne à dimensão confessional da cristianização, há extensão e generalização de seu domínio para além da penitência. Extensão, porque afora a recondução do sacramento da penitência instituído como obrigação anual desde o Concílio de Latrão (1215), haverá no seu interior a formação de um enorme dispositivo discursivo em torno do exame das almas. Generalização, porque tudo na vida do indivíduo precisa ser verbalizado, senão como pecado, pelo menos como material de exame e de análise. Cresce o poder do confessor na medida em que é desde então designado como mestre da absolvição. Nessa função é imprescindível o desenvolvimento do poder empírico do olhar e da audição, observando e examinando o que ocorre com o penitente durante o sacramento da penitência.
Decorre que a preocupação com a pastoral como tecnologia de governo das almas tem na literatura confessional lugar privilegiado, sobretudo nos escritos de Carlos Borromeu e do Concílio de Trento, nos quais exige-se do confessor diversas qualificações.
Além da posse do caráter sacerdotal e da autorização de um bispo, para confessar é preciso aprimorar o zelo, o amor e o desejo voltado para o bem e o interesse dos demais, além de saber como combater aqueles que resistem a Deus. Imprescindível é portar-se como sábio, na condição do juiz que age com correção, do médico que atua terapeuticamente e do guia que orienta com diligência e prudência.
Tais qualificações precisam ser postas em prática do início ao fim do sacramento da penitência. Assim que o fiel chegar para confessar-se, o sacerdote deverá demonstrar junto dele atitude de acolhida e disponibilidade, sem jamais deixar transparecer que o escuta de mau humor; em seguida, é mister solicitar do penitente a confissão; é necessário saber se o penitente está no estado de contrição, a fim de que seus pecados possam ser redimidos. Para isso, é preciso submetê-lo a um exame, perguntando-lhe acerca da preparação de sua confissão ou quando se confessou pela última vez; deve saber dele se mudou de confessor e o porquê da mudança, se por indulgência de um confessor mais brando na concessão da penitência ou devido à outra razão justificável.
Após a contrição, é imprescindível que o fiel faça o exame de consciência; no caso de confissão geral, o sacerdote lhe pedirá que represente toda sua vida.10 Finalizado o exame de consciência, o confessor impõe a satisfação observando tanto seu caráter penal constituído pela punição no sentido estrito, quanto seu caráter medicinal ou corretivo que permitirá ao penitente ser preservado de possíveis recaídas.
É exorbitante a quantidade de regras que compõe o exame e a análise, introduzidas no sacramento da penitência. Com efeito, em vez de sua intensificação houve incremento de suas atribuições excedendo a confissão das faltas, de tal modo que a vida completa do indivíduo é submetida ao exame geral.
A partir da segunda metade do século XVI ocorre a difusão da prática da direção de consciência nos meios cristianizados e urbanizados, principalmente nos seminários e colégios católicos. 11 Nos seminários, ela é exercida fora da confissão para averiguar nos seminaristas seu progresso na virtude, sua atitude com o próximo e, principalmente, sua vida interior. Implica verbalizar ao diretor de consciência tentações e maus hábitos, a repugnância ao bem, faltas comuns e sua procedência e os meios que serão empregados para corrigi-las. Além do exame completo da vida na confissão, investe-se nela novamente nos seus menores detalhes na direção de consciência. Trata-se de duplo filtro discursivo no interior do qual qualquer comportamento, conduta, relação com os demais, pensamentos, prazeres e paixões precisam ser discriminados em termos da oposição absoluta entre bem e mal.
Além de extensão e generalização da extração da verdade do indivíduo pela confissão e pela direção de consciência, a cristianização em profundidade centraliza os pecados da carne em torno do corpo de desejo e de prazer. Dentre tudo aquilo que precisa ser verbalizado para um diretor, a concupiscência tem lugar privilegiado.
Se no século IV Cassiano dizia que o fundamento do exame de consciência é a concepção de “concupiscência secreta” (FOUCAULT, 1994d, p. 810), a elaboração consistente e sistemática em torno de tal tema é de Santo Agostinho (FOUCAULT, 1994d, p. 168-178).
No livro XIV de A Cidade de Deus, Agostinho descreve de modo sombrio o prazer sexual assemelhando-o ao espasmo epiléptico durante o qual o indivíduo perde o controle completo de si próprio. O aspecto paradoxal da teologia da graça de Agostinho foi ter ele afirmado ao mesmo tempo o horror ao ato sexual e a possibilidade da existência de relações sexuais no paraíso, antes do pecado original. O modo como entende a sexualidade antes da queda não se equipara à forma descontrolada que ela teria assumido posteriormente. No paraíso, cada parte do corpo de Adão obedece perfeitamente à sua vontade, de modo que desconhece a excitação involuntária ou a polução noturna. Ocorre que desde a desobediência à vontade de Deus em virtude do exercício da vontade autônoma, ele negligencia o fato de que sua vontade depende inteiramente da vontade do Criador. Como castigo por tal rebeldia, lhe é destituído o suporte ontológico da liberdade. Com isso, seus genitais deixam de obedecer às suas ordens, revoltando-se contra ele.
Se entre os gregos a ereção sexual é a marca do homem ativo e livre, na teologia da graça agostiniana será a imagem do homem revoltado contra Deus. A concupiscência, com sua força e seus efeitos, torna-se o principal problema da vontade. O desejo involuntário de pecar, que é a própria definição de concupiscência, deixa de ser pensado como obstáculo externo da vontade para se lhe tornar inerente. Em vez de ser identificada como expressão de desejos medíocres, a concupiscência constitui efeito da vontade humana que excede os limites inicialmente fixados pelo Criador.
A luta espiritual contra os poderes da concupiscência prescinde da estratégia platônica do redirecionamento do olhar para o alto evocando pela memória a realidade que outrora se conheceu e, em seguida, foi esquecida; antes, supõe orientá-lo para baixo ou para o interior, a fim de decifrar entre os movimentos da alma, aqueles que procedem da concupiscência. Como o desejo de pecar quase sempre está mesclado à vontade, é preciso desenvolver a capacidade de distinguir entre bons e maus pensamentos, o que exige a permanente hermenêutica do sujeito.
A abordagem da concupiscência que se intensifica nos século IV e V na vida monástica é deixada de lado pela penitência escolástica que vai do século XII ao XVI, para ser retomada posteriormente na doutrina e na prática da Igreja da Contra-Reforma. Não que na penitência escolástica os pecados de ordem sexual deixem de ser confessados; a questão é que são avaliados por um critério diferente daquele do desejo involuntário de pecar, resquício concupiscente do pecado original. Em vez de interiorização, a verbalização (aveu) da sexualidade adquire formas jurídicas sendo que as faltas volvem-se infrações contra regras sexuais. Tal é o caso da fornicação, qual seja o ato sexual entre duas pessoas fora do matrimônio; ou ainda o adultério, ato entre uma pessoa casada com outra não casada ou casada com outro; também o estupro, que consiste no ato sexual com uma virgem que consente, mas que não é desposada; o rapto, que é a captura pela violência com ofensa carnal. Há ainda a moleza, constituída pelas carícias que não conduzem ao ato sexual legítimo; a sodomia, que é a consumação do ato sexual em lugares não naturais. O incesto, que é o ato sexual com parentes até o quarto grau. Enfim, a bestialidade, ato cometido com um animal. Na penitência escolástica a filtragem de obrigações e infrações concerne ao aspecto relacional da sexualidade, aos vínculos jurídicos entre as pessoas.
A partir do século XVI, no contexto da Reforma e Contra-Reforma, haverá transformações significativas em relação à penitência escolástica. Quando o sacerdote interroga o penitente ou o diretor pergunta ao aluno sobre os pecados contra a castidade, deve cuidar para não se deixar contaminar pelo que escuta e, além disso, impedir que o penitente confesse menos do que fez ou que aprenda mais do que já sabe. Ao confessor ou diretor basta saber o que é necessário e esquecer o que lhe foi dito quando terminar a confissão. Ele precisa interrogar os pensamentos para evitar indagar sobre os atos, caso estes últimos ainda não tenham sido cometidos. O confessor jamais deve mencionar os tipos de pecado; apenas exigirá do penitente ou dirigido a qualidade do pensamento que lhe ocorreu, atos que tenha cometido, com quem, extraindo assim de sua boca qualquer espécie de luxúria, sem se expor ao perigo de lhe ensinar qualquer outra. Tais recomendações indicam que o aspecto relacional do sexo deixa de ser fundamental na confissão penitencial; o novo foco do interrogatório é o próprio corpo do penitente, seus gestos, sentidos, prazeres, pensamentos e desejos.
O corpo desejante torna-se objeto maior de preocupação dos diretores de consciência e confessores em meados do século XVIII. O centro da atenção do pastor, do diretor de consciência ou do educador não é a vida conjugal, mas a sexualidade solitária da criança, do aluno e do seminarista que normalmente satisfazem o desejo sexual pelo contato com o próprio corpo.
Observa-se um deslocamento significativo, porque o pecado deixa de incidir sobre a relação ilegítima para localizar-se no próprio corpo. Se outrora o pecado da carne constituía infração à regra da união, habitará doravante o interior do corpo. Interrogar as diferentes instâncias sensíveis do corpo é a estratégia privilegiada para prevenir e combater o pecado da carne.
As diferentes infrações às leis relacionais no que concerne aos parceiros, a forma do ato, enfim todas essas coisas que vão da fornicação à bestialidade, tudo isso não será mais que o desenvolvimento, de certo modo exagerado, desse primeiro e fundamental grau do pecado que a relação consigo e a própria sensualidade do corpo constituem. (FOUCAULT, 1999, p. 175)
Desde o momento em que o corpo e seus prazeres constituem objetos fundamentais do sexto mandamento, um novo tipo de saber é estabelecido: a “fisiologia moral da carne”. (FOUCAULT, 1999, p. 176)
A pastoral decorrente do Concílio de Trento introduz a tecnologia da alma no corpo como fonte de prazer e de desejo. “É assim que se passa do velho tema de que o corpo estava na origem de todos os pecados à idéia de que há concupiscência em todas as faltas.” (IBID., p. 179) Ocorre “uma encarnação do corpo e uma incorporação da carne” (IBID., p. 179) que fazem surgir na junção da alma com o corpo o jogo do desejo e do prazer.
Na sociedade moderna e descristianizada a partir do século XIX, a verdade da identidade está atrelada à expansão e à intensificação das enunciações em torno do desejo sexual, particularmente na revelação de seus segredos a outrem. A discursividade do desejo, que anteriormente povoara apenas práticas institucionais nas salas de aula, nos seminários e confessionários, expande-se a outras dimensões do tecido social.
A dupla filtragem do discurso da concupiscência ao longo da confissão e da direção de consciência cristã assume outras formas no plano das práticas e saberes a partir do século XIX, como observara Foucault em Histoire de la sexualité, I (1976, p. 78-80).
No plano das práticas, a confissão difunde seus efeitos e modalidades às diferentes esferas da vida social: na justiça, na medicina, na pedagogia, nas relações familiares e amorosas, na esfera do cotidiano, dos ritos solenes etc. No plano dos saberes, está presente nos domínios da literatura e da filosofia. Na literatura, mediante a tarefa infindável de procurar no fundo de si mesmo, entre as palavras, uma verdade que a confissão mostra como o inacessível; na filosofia, a busca da relação fundamental com a verdade, não na condição de saber esquecido no fundo de si mesmo, mas a partir de impressões fugidias no indivíduo cujo exame pode proporcionar certezas da consciência fundamentais.
Singularmente relevante na proliferação da verdade nas práticas confessionais é seu deslocamento do confessionário para o divã, mediante a constituição moderna da “ciência-confissão” (FOUCAULT, 1976, p. 86).
A ciência-confissão tem um caráter paradoxal nos aspectos prático e teórico. No aspecto prático, porque é continuidade dos rituais da confissão cristã e seus conteúdos, tal como a exigência de discursividade dos desejos escondidos no campo da sexualidade (FOUCAULT, 1994d, p. 168-178); no entanto, constitui uma descontinuidade quando se trata de seu objetivo, na medida em que solicita que os desejos sejam formulados num discurso de verdade que não procura evitar o pecado e alcançar a salvação, e sim vinculá-los aos domínios do corpo e da vida (FOUCAULT, 1976, p. 86). No aspecto teórico, porque a possibilidade de uma ciência do indivíduo, a validade da introspecção e a evidência da experimentação não partem de um discurso auto-referente, de modo que suas análises versam sobre os problemas inerentes aos discursos de verdade de nossa sociedade. Novamente, Foucault reitera que no domínio das ciências humanas a verdade jamais é índice de si mesma, porque seu próprio objeto, constituído pelas diferentes esferas do ser humano, se lhe escapa.
Na clínica, a produção da verdade depende, de um lado, do indivíduo que fala e que, curiosamente, identifica-se com aquele de quem se fala; mas, de outro, ela somente se realiza por meio de um outro que a escuta e que coincide com aquele que a interpreta. (IBID., p. 89) A articulação entre enunciação e interpretação ocorre mediante um exercício do poder, já que aquele que interpreta e supostamente conhece a verdade se impõe sobre aquele que a verbaliza, de modo que este reconheça aquela decifração como sua verdade. Completa-se o mecanismo de sujeição: o indivíduo se reconhece como sujeito porque antes é sujeitado por um conhecimento que desconhecia e agora admite como seu e como sua verdade.
A complexidade desse mecanismo de sujeição da subjetividade que vai da confissão cristã à prática psicanalítica está subentendida na investigação de Foucault quando escreve que “o homem, no Ocidente tornou-se um animal confidente” (IBID., p. 80).
A tarefa do genealogista não é contrapor-se à verdade cristã ou à verdade psicanalítica. Ele apenas quer apontar em tais domínios que as práticas confessionais em torno dos desejos, pensamentos e impulsividades tornaram-se tão evidentes para os modernos que raramente são diagnosticadas como recondução de estratégias históricas de poder cuja legitimidade exige permanentes justificações de verdade.
Desconstruir a aparente evidência de que a confissão revela a verdade do homem na sua identidade de ser desejante constituiu o objetivo de Foucault num determinado momento de sua investigação, quando esboça a trajetória da “genealogia da concupiscência” 12 no cristianismo ocidental e seus desdobramentos modernos na “genealogia do homem de desejo” (FOUCAULT, 1984, p. 20).