Keywords
Poucos temas do pensamento wittgensteiniano granjearam tão pouca estima como a questão estética. A análise feita por Hans-Johann Glock parece reunir bem a opinião de boa parte dos comentadores de Wittgenstein: “a estética não figurava entre os interesses filosóficos centrais de Wittgenstein; em sua vida, entretanto, a arte, em especial a música, ocupou um lugar de primeira grandeza” (GLOCK, 1998, p. 139). Se se levar em consideração as afirmações de Glock, a estética só ocuparia um centro de interesse periférico na obra do autor vienense, uma vez que ela é citada apenas uma única vez na única obra publicada em vida por Wittgenstein, o Tractatus Logico-Philosophicus. Mesmo mantendo uma relação profunda com a arte<1, grande parte da crítica se limitou a identificar Wittgenstein como sendo o pioneiro de um antiessencialismo estético e artístico.
No chamado “primeiro Wittgenstein”, a estética e os problemas da arte ficam em suspenso: o mundo lógico e com sentido do Tractatus não admite objetos ou ações diferentes uns dos outros e a ação ética e a obra de arte são a apresentação de uma diferença e um excesso relativamente aos objetos e aos fatos mundanos descritos pela lógica. Ainda que esta paisagem seja árida, trata-se do local onde se aprende que, como Wittgenstein vai afirmar na Conferência sobre Ética (1930), não existe nada essencialmente bom ou belo e os valores e os problemas que designamos como éticos e estéticos resultam de uma experiência humana com os limites do mundo, da linguagem, da representação e do sentido. Na moldura do Tractatus, o estético e o ético significam um excesso que não pode ser suportado. Por isso, a partir de um dado momento, no Tractatus, surge o importante conceito sub specieaeterni(sob a forma do eterno), o qual designa uma forma de visão e contemplação que implica a suspensão do tempo. Trata-se da descrição do olhar sobre o mundo que transforma os objetos percebidos, os fatos e os estados de coisas em obras de arte. É por isso que Wittgenstein diz que a ética e a estética transformam o mundo.O percurso pelo Tractatus tem como finalidade mostrar que do ponto de vista lógico, científico e matemático não há valor, arte, ética ou, como diz Wittgenstein na mesma conferência, milagre. O modo de ver da ciência não permite reconhecer essas regiões mais importantes da vida humana.
A assimilação realizada por Wittgenstein entre ética e estética não foi bem compreendida por muitos dos seus leitores, gerando até mesmo uma aparente falta de interesse. É possível que este aparente desinteresse oscile entre a atitude de indiferença de uns e a indignação de outros. A falta de popularidade da questão não é de todo infundada, mas parte da dificuldade de compreender a enigmática tese tractariana que afirma: “[...] ética e estética são um” (WITTGENSTEIN, 2010, p. 277).
Em todo o caso, mesmo as dificuldades inerentes ao próprio tema, não podem ser entendidos como barreira ou impedimento para a análise que nos propomos a realizar. Os próprios textos de Wittgenstein não podem deixar de conter a chave ou, ao menos, de indicar algum caminho seguro que, de algum modo,ofereça uma pista a partir da qual seja possível sua correta interpretação.
Uma análise mais demorada da tradição filosófica pode indicar um nítido afastamento entre Ética e Estética, ou seja, uma relevante heterogeneidade entre ambas. Não parece evidente, a primeira vista, o que um estudo da questão ética<2 pode ter em comum com uma pesquisa de ordem estética. Isto é, não parece claro o que a indagação ética poderá ter em comum com a análise estética que, grosso modo, tem como objeto questões relativa à apreciação do belo, das obras de arte, ou ainda, faz referência a própria atividade artística<3. Assim, sem uma análise mediata a respeito do enunciado citado (Ética e Estética), não se consegue entender a identificação, tampouco, se consegue chegar ao lugar que a Estética ocupa no pensamento e, sobretudo, na atividade filosófica de Wittgenstein, pois, o que a tradição sugere, como vimos, é um contínuo afastamento entre ambas.
É preciso lembrar que uma das atitudes típicas que caracterizam a produção intelectual de Wittgenstein é a característica de fazer emergir os temas mais relevantes de forma súbita e inesperada no corpo do texto. Certamente, é possível considerar que a questão estética não se encontra alheia a esta possível “regra”. Em geral, o surgimento inesperado de uma informação acarreta como consequência a falta de observação por parte do interlocutor, o que pode gerar graves equívocos, uma vez que, no caso de Wittgenstein, essa característica é uma forma de alerta, chamando a atenção do leitor para a existência de um problema significativo, de grande relevância, o qual não pode ser negligenciado.
Fica manifesto, desde já, que Wittgenstein trata da temática da ética de maneira original, rompendo com os recursos de análise utilizados pela filosofia ao longo da tradição. Porém, é mais surpreendente perceber, e esta é uma informação de grande importância, que ele trata dos mesmos problemas na esfera tanto da Ética quanto da Estética, conforme assegura em dois momentos: O primeiro, na proposição 6.421, onde afirmar que “é evidente que a Ética não se pode expressar. A Ética é Transcendental. (Ética e Estética são um)” (WITTGENSTEIN, 2010. p. 277). O segundo momento que permite aplicar a mesma análise para ambos os casos (Ética e Estética), é oriundo da Conferência sobre ética, onde, anos mais tarde, Wittgenstein declara: “Agora vou usar o termo ética num sentido ligeiramente mais amplo, num sentido que, de fato, inclui aquilo que acredito ser a parte mais essencial do que geralmente é chamado estética” (WITTGENSTEIN, 1995, p.38). Seguindo as considerações de Crespo: “Declaração esta que, em conjunto com a identificação de ética com a estética declarada pelo Tractatus, autoriza fazer transições entre o que Wittgenstein diz sobre ética e a esfera da estética” (CRESPO, 2011, p. 223). Esta informação é de fundamental importância para a correta compreensão do papel desempenhado pela estética no pensamento wittgensteiniano, bem como para o êxito deste trabalho.
A proposição tractariana 6.421, afirma categoricamente que ética e estética são um. Antes desta afirmação, Wittgenstein anunciou de forma clara, como se fossem premissas derivadas de um silogismo, que não existem proposições de ética e que a ética pertence a dimensão do inefável, sendo transcendental. Ora, diante do exposto é possível concluir que o argumento também se aplica a estética, se uma e outra são o mesmo (são um), é de admitir também que a estética é transcendental e, portanto, não passível de qualquer enunciação por meio da linguagem. É comum encontrar em diversos momentos de sua atividade filosófica, confirmações que defendem a impossibilidade de enunciados éticos e, portanto, também, a impossibilidade de enunciados estéticos e religiosos. É este o caso, por exemplo, da proposição 6.42 que afirma: “É por isso que tampouco pode haver proposições na ética. Proposições não podem exprimir nada de mais alto” (WITTGENSTEIN, 2010, p. 275), ou ainda, fazendo referência a estética, afirma na obra Cultura e Valor que “em arte é difícil dizer-se algo tão bom como: nada dizer” (1980, p. 42).
Quando Wittgenstein emprega o termo Estética, no Tractatus, ele se refere a uma forma peculiar de olhar, de observar o mundo e de mergulhar de forma contemplativa em sua beleza. Trata-se de admirar o mundo de modo correto, ou seja, como uma verdadeira obra de arte. Pois, cada vez que Wittgenstein invoca o ponto de vista da estética, está pensando na beleza da natureza (CRESPO, 2011), em relação a qual a grandiosidade da produção artística representa apenas uma ínfima parcela:
Em sus notas y observaciones, Wittgenstein estabelece uma distinción básica entre el campo de laarte, mucho más restringido que el anterior. Mientrasque el concepto de ‘arte’ se refiere a um domínio específico de objetos – las obras de arte – o de prácticas – las artes -, el término ‘estética’ designa um conjunto mucho más amplio de manifestaciones y actitudes, no sólorespecto a las obras artísticas, sino tambiénrespecto al mundo y a la vida humana. (MARRADES, 2013, p. 11-12)
Ao dizer respeito ao mundo e a vida humana, Wittgenstein entende que só existe uma maneira possível de ver o mundo como obra de arte: se ele for visto sub specieaeternitatis<4, ou seja, “sob a forma da eternidade”. “Esta visiónesla forma más alta de percibirlas cosas y difere de lainadecuadapercepciónpropia de laopinión y laimaginación” (SOMAVILLA, 2013, p. 51). Isso corresponde a dizer que o ponto de vista estético se atinge mediante um distanciamento dos objetos em geral, uma interrupção temporal, cuja finalidade consiste na abolição de todo o mecanismo conceitual que sobre eles pesa enquanto objetos do entendimento. Quer dizer, o ponto de vista estético desconsidera a apreensão dos objetos enquanto fenômenos, tratando de contemplá-los como verdadeiras obras de arte<5, o que não significa anular o fenômeno, pois,
este movimento de destacar algo, (...) permanece preso ao fenômeno, não o anula (como na cabeça C-P o desenho permanece o mesmo, mesmo que de cada vez se veja coisas diferentes), por isso é que esta maneira de olhar o mundo é um combate contra a cegueira que restitui o mundo. (CRESPO, 2011, p. 268)
A consequência dessa atitude reflete uma transformação no próprio olhar, através do qual o expectador capta o objeto e o próprio mundo de um determinado modo. “No se trata de ver algo más sino de ver de otramanera” (ARENAS, 2013, p. 108). A questão central consiste em compreender como é possível efetuar essa mudança, de que maneira é possível olhar para os objetos e para o mundo e vê-los, segundo Wittgenstein, com um olhar estético. Ora, captar o mundo e os objetos deste modo consiste em apreendê-los, sub specieaeterni. “A visão estética corresponde a uma experiência com dois aspectos principais: é uma experiência de excesso e é uma experiência de transformação dos limites do mundo” (CRESPO, 2011, p. 221).
De tal modo que o mundo se transforma em sua totalidade e, nesta perspectiva, também as coisas singulares assumem uma importância impar como partes componentes do todo. Assim, quem contempla os objetos desta maneira retira-lhes as formas regulares que emolduram a sua compreensão a partir de finalidades de conhecimento.
Mas trata-se de uma transformação particular, porque aquele que reconhece valor no mundo afasta-se do mundo não o perdendo de vista: os factos continuam a existir e o mundo, enquanto totalidade daquilo que acontece, permanece. Este movimento de transformação é descrito por Wittgenstein como se o sujeito, no caso da ética, pudesse pôr-se no exterior do mundo, o que significa uma saída do sujeito para fora de si próprio. (CRESPO, 2011, p. 227-228)
Como que, nas palavras de Crespo, a apreensão dos objetos fosse feito a partir do exterior e sem qualquer interesse ou outra motivação a não ser o prazer que a contemplação proporciona. Estar no espaço e no tempo significa ser atingido por eles. Recusar a influência sobre os fatos é o mesmo que suspender o tempo, não estar no tempo, mas viver no presente: “[...] vive eternamente quem vive no presente” (WITTGENSTEIN, 2010, p. 277). O que permite concluir que, de acordo com as considerações de Somavilla (2013, p. 51), “elpunto de vista sub specieaeternitatis transcende el tempo y elespacio.
Assim, a apreensão estética traduz uma maneira particular de o observador ser atingido pelos objetos enquanto meras aparições que agradam ao sujeito por ocasião da sua contemplação. “O mundo me é dado”, escreve Wittgenstein nos Diários (8.7.1916), “isto é, a minha vontade alcança o mundo todo do exterior como se ele fosse um todo limitado”. Essa transformação que acontece com um objeto qualquer, quando contemplado com o olhar sub specieaeterni, é a mesma que a obra de arte realiza na esfera artística<6. Diferentemente de Spinoza que compreendia a visão sub specieaeternitatiscomo a percepção contingente da razão que conduz a uma vida virtuosa,“Wittgenstein sostiene que elpunto de vista sub specieaeternitatisse dirige haciacualquier esfera delespíritu y la cultura humana, especialemnetelos campos del linguaje, de la filosofia y del arte” (SOMAVILLA, 2013, p. 53).
Mas esta mudança na forma de olhar só é possível se as coisas forem olhadas como obras de “Deus”<7, descobrindo em cada coisa o reflexo do milagreque o mundo, e tudo o que há nele, revelam. Ou seja, é como se a beleza das coisas se impusessem a partir do fato, da ruptura ontológica, de existirem como são. O ponto de vista estético manifesta o singular enquanto tal e, atira para um plano de completa irrelevância as formas categoriais a partir das quais as coisas são objetos classificados. Tudo isso é assegurado da seguinte forma:
A obra de arte é o objeto visto sub specieaeternitatis, e a vida boa é o mundo visto sub specieaeternitatis. Este é o elo entre arte e ética.
A maneira usual de olhar vê os objetos quase de dentro; a visão sub specieaeternitatis é de fora.
De tal maneira que eles têm por fundo o mundo inteiro. (WITTGENSTEIN, 1971, p. 154)
Assim, é possível destacar desta nota ao menos dois elementos relevantes, os quais contribuem para a análise da questão estética em Wittgenstein. O primeiro faz referência a semelhança entre Ética e Estética. O segundo, por sua vez, situa o objeto no espaço lógico, enquanto visto como obra de arte e enquanto visto como algo comum.
É importante salientar que a conversão de um objeto ordinário em objeto artístico anuncia uma revolução relativa ao habitual modo de ver. Ou seja, o ponto de vista estético não considera o objeto à luz dos conceitos do entendimento em conexão com as formas puras da intuição<8. O modo de vista estético prescinde das condições gerais a partir das quais os fenômenos acontecem no plano empírico. Esta alteração das formas puras da intuição e das categorias do entendimento origina uma compreensão completamente nova do objeto. Consoante às considerações de Crespo (2011, p. 257),
esta mutação das coisas em obra de arte, implica o reconhecimento que a mais vulgar de todas as coisas, ou ações, pode assumir um aspecto estético ou divino, o qual resulta não de uma transformação do mundo, mas do olhar.
É o olhar que se altera e não o objeto. Trata-se, portanto, de uma questão de interpretação: “Mas podemos também vera ilustração (ou o objeto) ora como uma, ora como outra coisa. – Portanto, nós a interpretamos e a vemos como a interpretamos” (WITTGENSTEIN, 1999, p. 178). O olhar estético retira dos objetos toda a sua consistência fática, ou seja, todas as determinações objetivas, que o isolam, para fixar o aspecto peculiar da forma de ver que é próprio disso a que ele, o autor, chama de estético. Trata-se, de acordo com o vocabulário de Wittgenstein, de um olhar milagroso.
Cabe lembrar que, o conceito de milagre não tem nenhuma referência com o seu sentido empregado na forma corrente, ou seja, como um acontecimento que contraria as leis naturais ou mesmo as categorias racionais.
Um milagre é, por assim dizer, um gesto feito por Deus. Tal como um homem tranquilamente sentado faz um gesto impressivo, Deus deixa o mundo seguir suavemente o seu curso e, em seguida, acompanha as palavras de um santo com uma ocorrência simbólica, um gesto da natureza. Um exemplo seria, ao falar um santo, as árvores à sua volta curvarem-se numa névia. Ora, será que eu acredito que tal acontece? Não. (WITTGENSTEIN, 1980, p. 71)
Milagre, para Wittgenstein, tem o sentido de admiração, de espanto por isto que está ai, por isto que existe, e nada pode ser mais espantoso do que a existência do próprio mundo. Tanto no que tange o milagre quanto a arte<9, o que é decisivo é ser impressionado de um certomodo. É como no caso da música, quando diz que: “para mim esta frase musical é um gesto. Ela penetra na minha vida. Eu faço-a minha” (WITTGENSTEIN, 1980, p. 109). Por conseguinte, esta forma de olhar se desvia da finalidade habitual de apreender os objetos enquanto subordinado por conceitos com vista ao conhecimento e, aquilo que se evidencia é a alegria, o prazer que é proporcionado a quem assim vê: “A vida é séria, a arte é alegre” (WITTTGENSTEIN, 1961, p. 159).
Apenas aqueles que conseguem contemplar o mundo como uma obra de “Deus”, portanto, com um olhar de admiração, é capaz de sentir a felicidade, a alegria e a paz que Wittgenstein se refere: “ser feliz significa dedicar lapropia vida al espíritu, libre de losdeseos de lavoluntad, y, em términos de Schopenhauer, em contemplar simplesmente como un ‘claro ojodel mundo’. Ello se consegue gracias a lacontemplación estética” (SOMAVILLA, 2013, p. 52). Contemplar um objeto qualquer como obra de arte é resultado de uma maneira específica de ver, de uma modificação no olhar. O objeto contemplado é o mesmo para todas as pessoas, porém, para aquele que alterou sua maneira de ver, conseguiu encontrar ali uma expressão do belo. É importante salientar que a beleza não existe enquanto propriedade essencial nem acidental no objeto: a beleza é transcendental, é de responsabilidade do sujeito que observa. No entanto, é como se o belo se destacasse dos fenômenos quando estes são observados de um determinado modo, que lhes é favorável<10.
O que faz o sujeito feliz não são os acontecimentos do mundo ou umacontecimento específico, no sentido de ser uma alteração dos fatos do mundo, mas a felicidade é resultante de uma transformação do modo de ver, da intuição ou contemplação. “A felicidade”, salienta Crespo (2011, p. 233), “é o que liga a ética e a estética, ambas entendidas como modos particulares de ver o mundo, os objetos e a vida”. Logo, se os fatos continuam os mesmos, então é possível concluir que a vontade altera o mundo na medida em que acrescenta sentido ao que acontece.
Aquele que consegue apreender o mundo a partir do exterior, como alguém que consegue sair dele e é capaz de contemplá-lo de fora, está em condições de alcançar uma satisfação desinteressada, uma alegria e uma felicidade sem motivo específico. Essa pessoa contempla o mundo, mas não se confunde com ele, de modo que esta atitude estabelece uma conexão entre o horizonte estético e o horizonte ético, no ponto preciso de que contemplar o mundo esteticamente significa viver a obra de Deus como obra de Deus. Desta forma se torna de fácil compreensão a identificação entre ética e estética como sendo “um”. É esta a abordagem que Wittgenstein pretende apresentar quando utiliza o amigo Paul Engelmann como exemplo:
Engelmann disse-me que em casa, ao mexer uma gaveta cheia de manuscritos seus, estes lhe parece tão excelentes que pensa que valeria a pena dá-los a conhecer a outras pessoas. (Diz que o mesmo se passa ao ler cartas dos seus parentes já falecidos.) mas quando pensa em publicar uma seleção desses manuscritos, as coisas perdem o seu encanto e valor, o projeto torna-se impossível. Eu disse que tal se assemelhava o caso seguinte: nada há de mais extraordinário do que ver um homem, que pensa não estar a ser observado, a levar a cabo uma atividade vulgar e muito simples. Imaginemos um teatro; o pano sobe e vemos um homem sozinho num quarto, a andar para frente e para trás, a acender um cigarro, a sentar-se, etc., de modo que, subitamente, estamos a observar um ser humano do exterior, de um modo como, normalmente, nunca podemos observar-nos a nós mesmos; seria como observar com os nossos próprios olhos um capitulo de uma biografia – isto poderia, sem dúvida, ser ao mesmo tempo inquietante e maravilhoso. Estaríamos a observar algo mais admirável do que qualquer coisa que um dramaturgo pudesse arranjar para ser representado ou dito num palco: a própria vida. – mas isso é o que vemos todos os dias, sem que tal nos provoque a mais ligeira impressão! Sim, mas não o vemos nessa perspectiva. – Bem, quando Engelmann olha para o que escreveu e o acha extraordinário (embora não se preocupe com a publicação de qualquer dos seus escritos), vê a sua vida como uma obra de arte feita por Deus e, como tal, merecendo decerto ser contemplada, assim como qualquer vida e tudo o mais. Mas só o artista é capaz de apresentar assim uma coisa individual de modo que ela nos apareça como uma obra de arte; é verdade que esses manuscritos perderiam o seu valor se fossem examinados um a um e, especialmente, se fossem olhados desinteressadamente, isto é, por alguém que não sente por eles, à partida, qualquer entusiasmo. A obra de arte obriga-nos – por assim dizer – a vê-la da perspectiva correcta; mas na ausência da arte, o objeto é apenas um fragmento da natureza, como outro qualquer; podemos enaltece-lo com o nosso entusiasmo, mas isso não dá a ninguém o direito de com ele nos confrontar. (continuo a pensar num desses insípidos instantâneos fotográficos de um fragmento de paisagem que tem interesse para quem os atirou porque estava lá e sentiu algo; mas qualquer pessoa olhará para eles com frieza de um modo inteiramente justificado, até ao ponto em que é justificável olhar friamente para uma coisa.)
Mas parece também que há outra maneira de apreender o mundo sub specieaeterni, para além do trabalho do artista. É o caminho do pensamento que, por assim dizer, voa sobre o mundo e o deixa tal como é – observando-o de cima, em voo. (WITTGENSTEIN, 1980, p. 17-18)
Esta longa citação faz referência a uma experiência que, assim como a atividade filosófica, é uma experiência do homem consigo próprio, “com a sua compreensão, com o modo como vê as coisas” (CRESPO, 2011, p. 246). Além disso, o relato oferece ainda outro modo de captar o mundo que vai além do modo sub specieaeterni, o modo de captar pela via do pensamento. Trata-se do pensamento filosófico pela aplicação do modelo descritivo, ou seja, o modelo que deixa as coisas serem aquilo que são e estar como estão. É um método característico, que não deixa acrescentar nada, antes proíbe toda e qualquer interpretação apoiada em critérios científicos. Wittgenstein faz questão de deixar claro que não se trata de uma teoria, o que ele mesmo assegura quando afirma: “se me expusessem qualquer coisa que fosse uma teoria, eu diria: Não, não! Isso não me interessa – Não é aquilo que estou procurando” (WITTGENSTEIN apud MONK, 1995, p. 278). O que está em causa aqui é a recusa a qualquer tipo de teoria,qualquer que seja, que force os objetos a serem percebidos de acordo com critérios meramente especulativos – como no exemplo, citado anteriormente, dos girassóis pintados por Van Gogh.Quem assim consegue olhar as coisas ao seu redor, vive como se visse o desenrolar de sua própria vida.
A apreensão artística da vida e do mundo em geral, acontece quando o olhar neutraliza todo gênero de interpretação a partir de critérios fixados nas próprias coisas do mundo, e se liberta para assistir a tudo na percepção do seu milagre – do milagre no sentido absoluto que tratamos anteriormente.
Nas palavras de Wittgenstein, “o milagre artístico é que o mundo exista. Que exista o que existe. Se é a essência do modo de considerar artístico que considere o mundo com olhos felizes?” (WITTGENSTEIN, 1961, p. 145). É importante notar que a expressão “milagre artístico” conjuga os dois componentes que estão em análise na identificação da Ética e da Estética. Ou seja, a ideia de “milagre” está relacionada diretamente com a ética, com o bem, cuja fonte é Deus; e a noção de “artístico”, por sua vez, encontra representação no estético, que contempla o mundo. A finalidade da arte, de acordo com Wittgenstein, é a beleza e a finalidade da vida é a felicidade. Não existe uma sem existir a outra. E o alcançar de uma pressupõe e obriga, necessariamente, alcançar a outra.
De tudo isso, o que realmente sobressai, como síntese da relação entre Ética e Estética, é o recurso a um conceito muito caro à filosofia do filósofo: é a partir da consciência da unidade da vida do sujeito que se torna possível unificar o diverso, o diverso que parece não unificável – não só o Ético e o Estético, mas isso que está em causa neles – ou seja, tudo. “Só a partir da consciência da unicidade da minha vida nascem religião – conhecimento – e arte. (WITTGENSTEIN, 1961, p. 145). É importante salientar que o aspecto religioso<11 aparece como uma espécie de atracadouro onde se prende a concepção de Ética e Estética em Wittgenstein.
Em suma, é possível considerar que a estética se apresenta como um motivo que perpassa a totalidade do conjunto da obra de Wittgenstein, não podendo ser ignorado por seus leitores. Neste sentido, o olhar sub specieaeterni se destaca, sobretudo nos primeiros escritos do autor, como sendo o olhar que transforma o mundo, trata-se, portanto, do olhar do homem feliz, o qual contempla o mundo como uma verdadeira obra de arte.
Nos primeiros escritos, tanto no Tractatus quanto nos Diários, o ponto de vista estético se atinge mediante um afastamento dos objetos em geral, trata-se, portanto, de uma interrupção temporal e espacial. É preciso ver os objetos como verdadeiras obras de arte, e não simplesmente como fenômenos, o que não significa anular o fenômeno. Wittgenstein defende uma transformação do olhar, mediante o qual o espectador capta o objeto de um determinado modo. A questão fundamental consiste em compreender como é possível efetuar esta mudança, ou seja, de que maneira é possível olhar para os objetos e para o mundo e vê-los com um olhar estético, como uma obra de arte.
Captar o mundo e os objetos deste modo consiste em apreendê-los sub specieaeterni, de tal modo que o mundo se transforma em sua totalidade. Trata-se de contemplar o mundo e os objetos a partir do exterior, fora do espaço e do tempo. Estar no espaço e no tempo significa, para Wittgenstein, ser atingido por eles, ser impotente frente à vida. O que ele sugere é suspender o tempo, não estar no tempo, mas no presente, afinal, “vive eternamente quem vive no presente”. Porém, esta mudança de visão só é possível se as coisas forem contempladas como verdadeiras obras de “Deus”, descobrindo em cada coisa o reflexo do “milagre” que o mundo revela.
O olhar estético retira dos objetos toda a sua consistência fática, ou seja, todas as determinações objetivas para fixar o modo peculiar de ver que Wittgenstein chama de estético. Trata-se, de acordo com o vocabulário wittgensteiniano, do olhar “milagroso”. Esta forma de olhar se desvia da finalidade habitual de apreender os objetos enquanto subordinados por conceitos com vista ao conhecimento e, aquilo que se evidencia é a alegria, o prazer que é proporcionado a quem assim vê: “a vida é séria, a arte é alegre”, diz Wittgenstein. Apenas quem consegue contemplar o mundo como uma obra de “Deus”, portanto, com um olhar de admiração, é capaz de sentir a felicidade, a alegria e a paz a que Wittgenstein se refere. O que faz o homem feliz não são os acontecimentos do mundo, mas a felicidade é resultante de uma transformação do modo de ver. Por isso a análise estética é tão importante para a vida e para toda a filosofia.